A presença chinesa na América Latina é ampla e diversificada. Essa nova realidade, que tem se intensificado rapidamente nos últimos anos, seja em trocas comerciais, investimentos diretos, aquisições e participação em grandes projetos de energia, infraestrutura e no agronegócio, coloca novos atores no cotidiano da população e no debate público.
Para entender como esse capital chinês tem alterado a dinâmica interna de cada país e os desafios para a integração entre os diferentes países da região, o Centro de Estudos para o Desenvolvimento Agrário e do Trabalho – CedLa, da Bolívia, sediado em La Paz, convidou especialistas de toda a América Latina, incluindo o INESC, para debater abertamente o tema.
Estiveram no “Fórum Debate: Políticas de Globalização na América Latina e Bolívia”, além do INESC, falando sobre as análises Brasil-China feitas em uma série de matérias aqui neste site e atualizando os principais desdobramentos desde então, Celio Bermann, da USP, Ariel Slipak, da Argentina, Manuel Sutherland, da Venezuela, Ana Lia Guerrero, da Argentina, Sergio Rivera, do México, e Silvia Molina, Miguel Crespo e Carlos Arze Vargas, da Bolívia. Os debates ocorreram em Santa Cruz de La Sierra, centro econômico do país e em La Paz, centro político da Bolívia. Os dois eventos reuniram mais de 300 pessoas, entre acadêmicos, estudantes, representantes da sociedade civil e do terceiro setor.
Javier Gómez Aguilar, diretor da CedLa, salientou a importância e os esforços somados de quase 20 instituições que apoiaram a organização do Fórum. “Análises mais profundas oferecem distintas perspectivas regionais sobre o problema comum da globalização econômica com presença massiva do capital chinês”, lembrou. Neste momento, pós uma época considerada progressista para a região e com a presença de novos atores como a China, como no passado foi o BNDES do Brasil, diz Aguilar, a Amazônia, essa região fronteiriça de riqueza extraordinária, é um dos alvos principais, afetando todo o bioma.
“A estratégia geopolítica tem vários interesses e a necessidade de trazer para a Bolívia especialistas como vocês do INESC, da Argentina, México e Venezuela é mostrar para a sociedade boliviana as dificuldades que vamos ter para administrar essa influência nos diferentes impactos que ela traz”, afirmou. De acordo com Aguilar, o momento atual é urgente, levantando perguntas necessárias sobre o presente e sobretudo para onde aponta o futuro da região.
Para Silvia Molina, a relação bilateral China-Bolívia é consideravelmente desigual. Para a pesquisadora, a presença do capital chinês no país debilita a institucionalidade e o marco legal boliviano, reduz a presença do estado em setores fundamentais da economia e do desenvolvimento social. “Além disso, as empresas chinesas tem afetado os direitos dos trabalhadores, com crescente precarização, e também causam muitos conflitos socioambientais. Nesse sentido, vivemos uma situação de licenciamento quase automático de projetos para aprovar o rápido ingresso desses capitais”, disse.
Como é o caso da Bolívia e também dos outros países, como se vê, as semelhanças com o exemplo brasileiro são muitas. De maneira geral, a América Latina compartilha os mesmos problemas ocasionados pela presença chinesa e a região é fruto de disputa cada vez mais intensa entre os EUA e Pequim: dependência de exportação de commodities sem desenvolvimento e diversificação da agricultura e indústria locais, acirramento de conflitos sociais, ambientais e laborais, financeirização excessiva sem controles internos eficientes, pressões políticas, lobby e falta de transparência.
Nos últimos dez anos, US$ 71 bilhões foram gastos pelos chineses para garantir aquisições de empresas no continente e a China já compra mais de um quarto de toda a exportação de commodities da América Latina. O estoque atual de investimentos chineses na região é de US$ 207 bilhões, sobretudo em infraestrutura, energia, mineração, hidrocarbonetos, agronegócio e tecnologia e as transações comerciais chinesas com a América Latina já superam US$ 200 bilhões. No âmbito financeiro, a China forneceu crédito de 141 bilhões de dólares na última década para os países da região, superando o fornecido por instituições como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial.
Mas além dos fatores econômicos, a China também tem sofisticado sua influência na América Latina através da cooperação transversal entre universidades, think tanks, meios de comunicação, partidos políticos e instituições diversas em ambos os lados do Pacífico; e, por outro lado, apostando na promoção da cultura chinesa e nos programas de intercâmbio com influentes figuras latino-americanas.
O nacional populismo militarista da Venezuela e outras experiências locais
A Venezuela, que também vive esses problemas mas apresenta uma realidade que é caso de estudo mundial em função da profundidade da sua crise econômica, única no planeta, despertou também grande interesse na apresentação de Manuel Sutherland, que mantém um centro de estudos em Caracas. Para Sutherland, a aguda crise do país, que fecha 2018 com inflação superior a 1 milhão por cento, não tem absolutamente nada a ver com o “socialismo”, como a direita gosta de alegar.
Ao contrário, a situação venezuelana atual é fruto de um “nacional populismo militarista” e da massiva concentração de renda e da fuga de capitais oriundos do petróleo (responsável por 95% das exportações do país) que, no auge, injetou no país 1 trilhão de dólares, cerca de 10 Planos Marshall, que ajudou a reconstruir a Europa inteira após a II Guerra Mundial.
Neste artigo, destrinchado na apresentação, Sutherland explica em detalhes como a Venezuela chegou onde está, o que inclui um déficit fiscal de dois dígitos pelo sexto ano consecutivo, o risco país mais alto do planeta, a escassez de bens e serviços essenciais e o valor do dólar paralelo – que fixa quase todos os preços da economia – que aumentou mais de 2.500% só em 2017.
“A política econômica bolivariana difere muito de ser “socialista”. O que se observa é um processo de desindustrialização severo em favor de uma casta importadora-financeira que, com um discurso inflamado e um clientelismo popular vigoroso, acelerou de maneira drástica a fase depressiva do ciclo econômico capitalista em um processo nacional de acumulação de capital baseado na apropriação da renda petrolífera”, analisa Sutherland.
Falando sobre a matriz energética brasileira, Celio Bermann, doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Energia da USP, disse que o governo brasileiro acaba ficando refém das exigências impostas pelos setores produtivos do grande capital, sem abrir um espaço de discussão pública em relação ao perfil dos investimentos em energia.
“É essencial um debate público constante sobre a política energética do Brasil. Só assim poderemos reorientar o modelo de desenvolvimento para uma matriz realmente renovável, com maior justiça social e ambiental”, criticou. Para o futuro, de acordo com o professor, o que temos até o momento são preocupações sobre o que disse Bolsonaro ainda em campanha, “que demonstrou insensibilidade social e incapacidade intelectual e pessoal na condução do país”.
Os dois especialistas argentinos apresentaram a realidade atual da China na Argentina, sobretudo na exploração de lítio e grandes projetos de energia hidrelétrica e nuclear. A China, por exemplo, está por trás da construção de duas grandes hidrelétricas na Patagônia – que também recebeu uma gigantesca base aeroespacial chinesa – e pretende implantar novas usinas nucleares, alvo de grandes protestos e preocupações ambientais. Recentemente, os dois países também assinaram mais de 30 acordos bilaterais.
Para Ariel Slipak, é importante lembrar que a China é a maior consumidora mundial de energia, a segunda em petróleo, que sua matriz energética ainda é baseada no carvão (cerca de 60%) e que a China também é a maior consumidora de cobre, alumínio, estanho, lítio, zinco, soja, açúcar e peixe muito em função da sua população urbana ter passado de 18% para 58% nas últimas décadas, com quase 750 milhões de pessoas “saindo da pobreza”, a expectativa de vida subindo de 66 para 76 anos ao mesmo tempo em que a desigualdade aumentou, sobretudo entre as regiões leste e oeste e que 70% da sua água doce está contaminada.
Na visão de Sergio Martinez, do México, “a China vai fazer o que se permita que ela faça”, o que passa necessariamente pela ideia de qual “desenvolvimento” a América Latina quer para si. Na sua análise, seja qual for essa ideia, ela precisa necessariamente levar em conta as realidades locais e respeitar o meio ambiente.
A CedLA
Fundado em 1985, o Centro de Estudos para o Desenvolvimento Agrário e do Trabalho é uma instituição sem fins lucrativos que se dedica à investigação crítica de temas econômicos e sociais na Bolívia e na América Latina, com sede em La Paz. O trabalho e articulação da CedLA se dá com os trabalhadores e trabalhadoras do campo e das cidades e suas organizações; organizações sociais e instituições públicas e privadas, além de redes afins na América Latina para o debate regional. É afiliada na Bolívia à União Nacional de Instituições de Ação Social (UNITAS) e no plano internacional ao Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (CLACSO).
O INESC
Fundado em 1979 em Brasília, o INESC é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, não partidária e com sede em Brasília. Há 40 anos atua politicamente junto a organizações parceiras da sociedade civil e movimentos sociais para ter voz nos espaços nacionais e internacionais de discussão de políticas públicas e direitos humanos, sempre de olho no orçamento público. Para o INESC, entender e interpretar esse orçamento é peça fundamental para promover e fortalecer a cidadania e garantir os direitos a todos cidadãos e cidadãs, melhorar processos democráticos e combater todas as formas de opressão, desigualdade e preconceito.