A quem interessa a privatização da Eletrobras na Amazônia?

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Desde que o governo enviou projetos de lei ao Congresso Nacional visando à privatização da Eletrobras e suas distribuidoras, a estatal tem sido alvo de um cabo de guerra. De um lado estão os trabalhadores da empresa pública e movimentos sociais contrários à venda e, de outro, a cúpula do governo e o mercado. Estão em jogo 31% da capacidade brasileira de geração de energia.

O processo de privatização da 16ª companhia de geração de energia do mundo, que conta com 22.921 funcionários e 15.900 empresas fornecedoras, deve começar pelo leilão das seis distribuidoras do Acre, Alagoas, Amazonas, Roraima, Rondônia e Piauí. Inicialmente previsto para maio, o edital foi publicado em 15 de junho e a definição das novas controladoras, via leilão, deve acontecer no máximo até outubro.

A movimentação em torno do edital motivou uma greve de três dias dos mais de 20.000 eletricitários que trabalham no consórcio de empresas da Eletrobrás. Reunidos com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), os trabalhadores pressionaram para que o governo desista da privatização, defendida no Projeto de Lei 9.463/18 e na MP 814/17. Em entrevista, Edney Martins, presidente do Sindicato dos Urbanitários no Amazonas (Situam), afirmou que o saldo da greve é positivo e que não acredita que o governo irá insistir na privatização das distribuidoras da maneira como as coisas estão hoje.

Segundo ele, dificilmente haverá interessados pelas empresas da Amazônia – no Amazonas, Roraima, Rondônia e Acre – que dependem de combustível fóssil. O PL 10.332/18, que tramita na Câmara,  não define quem irá subsidiar essa geração. Depois de retirar da pauta, Rodrigo Maia deu anuência para que uma manobra regimentar fosse aprovada no Congresso nesta terça (03 de julho).  A Câmara aprovou, por 226 votos a 47, que o projeto pode ser votado diretamente no plenário, sem precisar passar pelas comissões – o que poderia inviabilizar o leilão. Na quarta (04), o texto base que viabiliza a privatização foi aprovado por 203 votos a 123. A Câmara analisa também o Projeto de Lei 9463/18, do Executivo, que regulamenta a desestatização do setor de energia no Brasil. Pela proposta, mais ações da Eletrobras ficariam à disposição de investidores privados, diminuindo a participação da União na estatal.

A venda das distribuidoras é considerada uma primeira etapa para a privatização da própria Eletrobras. O argumento do governo é que a companhia ficará mais atrativa para investidores assim que se livrar das distribuidoras, que, segundo eles, são deficitárias. Por conta das dívidas e da necessidade de altos investimentos, a proposta do governo prevê que cada distribuidora seja vendida por R$ 50 mil.

Entretanto, os novos concessionários terão que fazer R$ 2,4 bilhões em investimentos imediatos. Cumprida esta etapa, a privatização da Eletrobras deve garantir R$ 12,2 bilhões aos cofres do governo federal. Um valor irrisório já que, somente de ativos, a empresa acumula 170 bilhões de reais. Nesta terça (10 de julho), Rodrigo Maia anunciou que o governo desistiu de votar a privatização da Eletrobrás este ano. A venda das distribuidoras na Amazônia, no entanto, foi aprovada e segue seu curso.

Para Martins, o diálogo foi aberto e essa indefinição faz com que as aquisições não sejam interessantes para qualquer player do mercado.. “A greve serviu para que abríssemos esse canal direto com o governo para procurar uma proposta que não seja a privatização, mas algo que seja viável tanto para o governo quanto para a sociedade. Afirmamos para o Rodrigo Maia que não existe a possibilidade dos trabalhadores deixarem de lutar pelas distribuidoras”, garante o sindicalista. O governo, no entanto, propôs que os trabalhadores abrissem mão das distribuidoras, prometendo, em troca, recuar nas geradoras e transmissoras – proposta que não convenceu e não foi aceita.

A Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), a qual o Situam é filiado e que faz campanha contra a privatização, defende a criação de uma Empresa Brasileira de Distribuição, que teria recursos provenientes de usinas não cotizadas. Para os sindicalistas, a origem da dívida das empresas se deve a sua importância como agente de desenvolvimento econômico e social para regiões mais pobres do país, como também à inadimplência de órgãos do próprio estado onde atuam.

“Essas empresas fazem um trabalho social importantíssimo, sobretudo na Amazônia. O papel delas é mais levar energia elétrica para o desenvolvimento do que para ganhar dinheiro e dividendos para acionistas. Precisamos manter esse caráter público”, diz Martins. Outra possibilidade é que as distribuidoras sejam gerenciadas por uma cooperativa de funcionários, ideia defendida pelo senador Rudson Leite (PV/RR).

“Se é para dar para alguém a concessão, eu defendo que seja entregue para os servidores da empresa. Assim, evitaremos demissões, os trabalhadores seriam indenizados e poderiam formar uma cooperativa para gerir a empresa. Porque se entregar para o capital privado, ele é selvagem, não quer nem saber, a tarifa de energia vai subir. Não tem a visão social que uma empresa pública precisa ter”, afirma Leite. De acordo com Martins, essa é uma alternativa interessante que pode ser estudada, desde que equacionado o custo operacional normal e “o custo Amazônia”, os desafios específicos que a região, como a logística mais complicada.

Privatização irrestrita e desafios para a mobilização social

A forma como se privatiza hoje, na avaliação de Luis Novoa, chefe do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia, é mais cruel que na época de Fernando Henrique Cardoso, que pelo menos conservava um discurso de fachada de que haveria contrapartidas sociais e outros investimentos seriam feitos. Mesmo que insuficiente, hoje a Eletrobrás ainda preserva um pouco de diálogo com movimentos sociais, ambientalistas e certa transparência.

“Agora a privatização é feita de maneira escancarada para fazer caixa imediatamente e ganhar a confiança dos investidores. Se aproveitam de um cenário de fragilidade econômica do país para entregar as empresas da forma mais isenta de regulação e controle possível”, critica Novoa. A concessão é plena, no que é chamado de “privatização aberta”, sem nenhuma contrapartida, a garantia de que não terão agência reguladora de olho, sem Plano Decenal ou programação de longo prazo exceto o próprio plano de negócio. “O governo não tem nenhum tipo de pudor em anunciar as privatizações dessa maneira”, diz.

Para o pesquisador, a perspectiva agora dos movimentos sociais é de cada vez mais negociar capital por capital, uma decorrência dessa internacionalização rápida e sem mediações. A necessidade de pressionar o capital chinês, o banco dos BRICS, a União Europeia e fazer uma análise dos tratados firmados dificulta o trabalho da sociedade e dos movimentos. Essa complexidade de atores envolvidos não está clara para todo o corpo de movimentos sociais envolvidos nesta nova .

“Temos que discutir a postura desses capitais na região amazônica para exigir um código de conduta específico. Isso pulveriza as lutas e retira do horizonte qualquer perspectiva de uma política pública de energia. O que temos é o mercado de energia e embaixo a sociedade tentando se defender desses ataques e ofensivas brutais, de retirada de direitos e perdas sucessivas”, analisa.

Além de negociar com o Estado, é preciso partir também para uma escala internacional de negociação tendo em mente o mercado global de energia em que o Brasil está inserido. “Muitos movimentos já têm claro que o compromisso é agora mais do que nunca de lutar por um novo modelo energético, articulado internacionalmente com base continental forte na América Latina, mas precisamos expandir essa consciência”, afirma Novoa.

Pressão forte na cúpula do governo

Para atingir o objetivo de privatizar a Eletrobras, o governo escalou Moreira Franco, ex-secretário-executivo do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que assumiu o Ministério de Minas e Energia – também para garantir foro privilegiado, frente às diversas acusações de corrupção que acumula.

Sem perder tempo, Moreira Franco, conhecido como o homem das privatizações do governo Temer, declarou que “se não privatizar a Eletrobrás o país vai sofrer um apagão”. Em tom de ameaça, afirmou ainda que “não podemos cometer o erro de fazer da ideologia uma ferramenta para punir as pessoas”. Para o vice-presidente da FNU, Nailor Guimarães Gato, a fala de Moreira Franco embute um raciocínio invertido. “É com a privatização que você vai ter problemas, inclusive aumento da tarifa para a população. Estados Unidos, Alemanha, Canadá, países centrais, não privatizam o setor elétrico por ser estratégico. O ministro Moreira Franco mente descaradamente. A manutenção do setor elétrico sob controle do Estado “não é uma questão ideológica, mas lógica”, diz o dirigente da FNU. “Lógico é o Estado controlar um setor estratégico”, lembra.

Matéria da Agência Sportlight mostrou que o lobby pela privatização da Eletrobrás gera excrescências como a própria empresa pagar cerca de R$ 3,5 milhões em “assessoria de imprensa” para ser difamada na mídia, alimentando matérias, colunas e reportagens com informações, releases e dados que prejudicam a imagem da Eletrobrás e aumentam a cobrança da sociedade mal informada pela sua venda. Uma estratégia conhecida e que tem dado resultado: a estatal já perdeu 42% de seu valor de mercado só no segundo trimestre de 2018. Em abril, valia R$ 29 bilhões. Hoje, caiu para R$ 16,9 bilhões. O motivo é a “falta de confiança na tentativa de privatização”.

Para Emanoel Mendes, diretor do Sindicato dos Eletricitários e da Associação de Empregados da Eletrobras, o aumento na conta de luz será inevitável com a privatização. Segundo ele, estudos da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) aponta para um reajuste de aproximadamente 20% na conta de luz. “Com as usinas, a Eletrobras vende energia para o mercado cativo a R$40 MWh. Se a empresa for privatizada, isso vai para o mercado livre que vai vender a energia para a população a R$200 MWh. Ou seja, vai ter uma diferença aí de 160%. E aí quem vai pagar essa conta? A população brasileira. Vai ao mesmo tempo aumentar o preço da energia e precarizar o serviço para a população”, explicou Emanoel.

Acordo coletivo

Durante a greve, os trabalhadores também pediram a saída do presidente da Eletrobrás, Wilson Ferreira Jr., que, na avaliação deles, não tem mais capacidade de continuar no comando da entidade, pois trabalha para a privatização e chegou a ofender diretamente os trabalhadores da empresa. Outro ponto importante foi a negociação do acordo coletivo.

A categoria é contrária às propostas da administração da Eletrobras, que quer introduzir novas cláusulas no contrato de trabalho dos eletricitários. A direção da empresa diz que já recuou em dois pontos: garantia de emprego e inovação tecnológica (proíbe a troca de um operador por um computador). Outros dois pontos seguem em negociação: a cláusula que muda os planos de saúde da categoria e a que permite transferência dos trabalhadores entre Estados.

“Precisamos destravar esse acordo coletivo de trabalho e estamos avaliando uma contraproposta para uma nova rodada de avaliação”, Ferreira Jr. Uma nova greve pode ser convocada, desta vez por tempo indeterminado, se as negociações não avançarem e o governo insistir na privatização das distribuidoras, garantem os dirigentes.

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Jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, conflitos socioambientais, povos indígenas, crise climática e direitos humanos. Fundador do Observatório da Mineração. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019) e finalista do V Prêmio Petrobras de Jornalismo (2018).