Os investimentos em grandes hidrelétricas na Amazônia colecionam uma série de problemas que minaram consideravelmente sua continuidade. Prova disto é a movimentação política produzida desde o Tribunal de Contas da União (TCU) e BNDES para tentar recolocar grandes empreendimentos hidrelétricos no cardápio de investimentos oferecidos como “negócios da china”.
Constam na fatura das transações envolvendo represas na Amazônia: projetos feitos em atropelo e sem consistência técnico-econômica; valores irreais formulados para ganhar licitações facilitadas por propinas e embaladas por elevados subsídios; desrespeito aos direitos dos povos indígenas; medidas legislativas para redução de Unidades de Conservação e pressão por medidas para agilizar e fragilizar o licenciamento ambiental; forte resistência social e uma enxurrada de ações judiciais, com questionamentos e violações apontadas pelo Ministério Público Federal e em instâncias internacionais de defesa de direitos humanos.
Por determinação do TCU, o governo federal tem até dezembro para dar posição definitiva sobre cinco grandes projetos paralisados na região Amazônica. Juntos, eles têm capacidade de geração de 17.508 MW — quase quatro vezes o potencial de Belo Monte.
Segundo Manoel Moreira, secretário de Fiscalização de Infraestrutura de Energia Elétrica do TCU, a definição do que é viável ou não está nas mãos da Casa Civil – e não dos órgãos ambientais – que também precisará construir um consenso entre os ministérios de Minas e Energia (MME) e do Meio Ambiente.
Tal fala expressa claramente a orientação política, em curso desde o impeachment, formalizada na Lei 13.334 de 2016 que cria o Programa de Parcerias do Investimento (PPI) e estabelece como prioritária a liberação a obtenção de licenças, autorizações, registros, permissões, direitos de uso ou exploração, regimes especiais, e títulos equivalentes, de natureza regulatória, ambiental, indígena e quaisquer outras necessárias à implantação e à operação dos empreendimentos aprovados no âmbito do Programa.
O primeiro projeto que pode ser revisto é o da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, no Rio Tapajós, no Pará, cujo licenciamento foi arquivado pelo Ibama em agosto de 2016, reconhecendo a inviabilidade ambiental da obra. Além de alagar a terra indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, que está em processo de demarcação e atingir dezenas de comunidades ribeirinhas, a obra causaria impactos ambientais irreversíveis.
Também estão na mira a hidrelétrica de Marabá, no Rio Tocantins, cuja viabilidade já foi aceita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), seguida pelas usinas de Jatobá, no Rio Tapajós (PA); São Simão Alto e Salto Augusto Baixo, ambas no Rio Juruena, entre os estados de Mato Grosso e Amazonas, que estão em fase de estudos.
Um acórdão do TCU, publicado em dezembro de 2017, é taxativo. “Não é razoável que os interesses dos povos tradicionais prevaleçam, a qualquer custo, sobre os da coletividade”, diz o documento. A pressão do TCU ressalta uma tensão evidente no ar. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao MME, retirou qualquer projeto de nova hidrelétrica no Plano Decenal de Expansão de Energia que vai até 2026.
Mesmo assim, o secretário do TCU ressalta que a EPE registra, no Plano Decenal 2017-2026, que as hidrelétricas são ainda importantes para ampliação da oferta de energia e que o potencial a ser usado está na região Norte. “O conflito de escolha entre a segurança operativa, as restrições socioambientais para construção de novas hidrelétricas e a as emissões de gases é um assunto que precisa ser debatido pela sociedade”, diz o texto.
Manoel Moreira coloca em xeque os direitos indígenas assegurados pela Constituição e por tratados internacionais. Segundo ele, “as comunidades indígenas não têm soberania sobre o seu território, e sim prerrogativa de uso. Em última instância, quem tem de decidir o que é possível ser feito em terras indígenas é o Congresso Nacional, que representa a sociedade”, disse.
Apesar de reconhecer o direito à consulta prévia, o acórdão também afirma que “o art. 231, § 3º, da Carta Magna e a Convenção-OIT 169 ainda não foram regulamentados de forma a tornar clara como se dá a participação desses povos na agenda estratégica nacional, em especial quanto à estruturação de grandes projetos hidrelétricos”, deixando brechas para a decisão do Congresso, por exemplo.
Reunidos no 15º Acampamento Terra Livre, que contou com a presença de 3.000 indígenas de todas as regiões do Brasil esta semana em Brasília, o povo Munduruku lembrou que só no Médio Tapajós há projetos para 43 usinas hidrelétricas (duas foram feitas) e 30 portos de soja, além de garimpos ilegais, retirada de madeira e palmito. Na região estão as terras Sawre Apompu, Juybu e Muybu. Os Munduruku seguem em luta contra os grandes empreendimentos na região e em defesa da demarcação das suas terras.
Já para o TCU, a “falta de regulamentação para a consulta aos povos tradicionais” pode, no limite, “conduzir a consequências graves à coletividade, entre as quais, a insuficiência de projetos de expansão de energia proveniente de hidrelétricas de grande porte, fundamentais para a segurança energética por possibilitarem a expansão de quantidade vultosa de energia; para a segurança elétrica, uma vez que contribuem de forma significativa para a estabilidade do sistema elétrico; e, também, para a modicidade tarifária, por se tratar da energia de mais baixo custo comercial”.
O TCU alega, no acórdão, que “somente a fonte hídrica é capaz de fornecer empreendimentos com altíssima capacidade de geração – como as UHE Belo Monte (11.233 MW), UHE Tucuruí (8.370 MW), UHE Jirau (3.750 MW), entre outros –, cada um dotado de importância única e fundamental para a segurança energética”. Para o tribunal, as fontes intermitentes – como eólicas, solares, biomassa e PCH –, “apesar de adicionarem capacidade de geração ao sistema, não permitem ao Operador Nacional do Sistema ter um controle sobre a produção de energia dessas usinas, uma vez que só conseguem gerar eletricidade quando há disponibilidade da sua fonte de geração”.
De acordo com o acórdão, embora a dimensão socioambiental seja tema de bastante relevância, “é fato que essa preocupação ocorre na medida em que as demandas de meio ambiente surgem e tornam-se obstáculos a serem superados para que as políticas energéticas e econômicas se concretizem”.
Chama a atenção também o estudo de caso da usina São Luiz do Tapajós feito pelo relator do acórdão, o ministro do TCU José Múcio Monteiro. O relator recomenda instaurar um processo de auditoria “por meio do qual serão analisados os procedimentos adotados pela Funai e pelo Ibama relativamente ao licenciamento socioambiental da AHE São Luiz do Tapajós”. Segundo Monteiro, a auditoria deverá analisar o planejamento elaborado pelos dois órgãos, os procedimentos adotados, se foram ou não padrão de acordo com trabalhos similares das entidades.
Monteiro questiona ainda as pessoas responsáveis pela execução dos procedimentos, incluindo “empresas contratadas pela Funai e Ibama, ONG’s contratadas/conveniadas/intervenientes, etc”. Para o relator, as conclusões apresentadas precisam ser investigadas, assim como a situação atual dos estudos relacionados à proteção ambiental e às áreas indígenas na área de influência da usina de São Luiz do Tapajós.
Em tom de franco questionamento, Monteiro afirma que é preciso avaliar “os fundamentos utilizados pela Funai para indicar a existência de terra indígena e declarar a inviabilidade do projeto São Luiz do Tapajós em razão da TI Sawré Muybu” e “a compatibilidade desses procedimentos e resultados com as normas constitucionais, legais e regulamentares que incidem sobre a matéria e com as necessidades de segurança energética do País”.
José Múcio Monteiro foi nomeado ministro do TCU em 2009. Nos anos 1980, foi presidente da Companhia Energética de Pernambuco (CELPE). A partir dos anos 1990, Monteiro foi deputado federal por cinco mandatos consecutivos, sobretudo pelo DEM, PSDB e depois PTB, onde defendeu Roberto Jefferson na Ação Penal 470 (conhecida como mensalão). Também foi ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República de 2007 a 2009. Na Lava Jato, Monteiro prestou depoimentos sobre a sua relação com o empreiteiro Léo Pinheiro, ex-presidente da OAS.
O vai e vem do BNDES e a pressão pela retomada de grandes hidrelétricas na Amazônia
Na curta gestão de Maria Silvia Bastos Marques, o banco anunciou, em outubro de 2016, uma nova política de financiamento para o setor de energia com um claro “endurecimento” dos recursos destinados às hidrelétricas. Em paralelo à melhora nas condições para o custeio de projetos de energia solar, o banco reduzido o limite de financiamento (baseado na Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP) para hidrelétricas, que passou de 70% para 50% dos itens financiáveis dos projetos. Acima deste limite seria com taxas de mercado e emissão de debêntures. Adicionalmente, o banco anunciou que deixaria de financiar com taxa subsidiada (TJLP) as linhas de transmissão, sem as quais novos projetos hidrelétricos na Amazônia não seriam viáveis.
A medida, contudo, parece ter sido motivada mais por uma avaliação de que o mercado financeiro privado estaria apto e interessado neste tipo de financiamento do que em uma avaliação socioambiental de que tais investimentos, por estarem envoltos em risco de crédito e reputação, deveriam ser repensados pelo banco e pelo governo – o qual sempre orientou suas prioridades.
Sinal disto é a mais recente mudança nas regras operacionais. Em março de 2018, sob a gestão do já ex-presidente Paulo Rabello de Castro, o BNDES realizou novas mudanças na política operacional, voltando atrás e trazendo mais facilidades para o financiamento aos projetos hidrelétricos. Foram ampliados os prazos, foi reduzido o spread e a forma de cálculo do total a ser financiado. Projetos hidrelétricos cujos financiamentos estavam restritos a 50% dos itens financiáveis (pela TJLP) agora poderão ter até 80% do valor total do projeto e até 100% dos itens financiáveis. Já o prazo foi estendido para até 24 anos, ante os anteriores de 16 a 20 anos. Linhas de transmissão também terão o mesmo prazo e agora poderão ter até 80% do valor do projeto financiado, e 100% dos itens financiáveis.
As mudanças são um retrocesso: antes, havia sido decidido que as atividades mais sustentáveis teriam um percentual maior de recursos. Na área de energia, a preferência seria pelas renováveis. Assim, as hidrelétricas e térmicas só contariam com metade do valor financiado, eólicas, 70% e as usinas solares teriam 80%. Com a regra revogada, agora todas as fontes passam a ter 80%. Estas mudanças, vistas em conjunto com o acórdão do TCU, sinalizam o risco de uma nova rodada de investimento em grandes hidrelétricas na Amazônia.
Procurada, a assessoria do BNDES não quis fornecer os dados pedidos e as justificativas para as mudanças de regras.
Para além das regras operacionais, contudo, o fato é que o BNDES já não tem o tamanho e capacidade de financiamento que reuniu entre os anos 2010 e 2014, auge dos investimentos em infraestrutura. Neste período, com fortes aportes do Tesouro Nacional, os empréstimos do banco representaram 17,1% dos investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) e 3,5% do PIB. No atual contexto onde minguou a capacidade de financiamento do Banco e onde o governo lhe impôs um papel de “estruturador de projetos” em especial de desestatização, cabe a pergunta: qual seria seu potencial para alavancar financiamentos para hidrelétricas na Amazônia? De onde viriam os recursos para financiar novos projetos? Sua política socioambiental, já frágil, poderia ser ainda mais debilitada em nome da atração do interesse de novos investidores cobiçados pelo atual governo?
Uma pista para a questão dos recursos é dada na fala otimista do ex-ministro do Planejamento e recém-empossado presidentes do BNDES, Dyogo Oliveira: “está cheio de gente querendo investir, cheio de fontes de recursos nacionais e estrangeiros”. O papel do BNDES pode ser ainda maior, acredita. “É mais uma questão de organizar os projetos, dar segurança jurídica, estabelecer compartilhamento adequado dos riscos (quem assume risco de engenharia, de construção, comercial, de demanda), Estruturando essas coisas direito, os recursos vão carregar esse investimento que realmente precisa ser maior”.
Em outra entrevista, Oliveira também afirmou que a área de infraestrutura precisa se modernizar e “ter, ao menos, estruturas de financiamento “non recourse”, que usam como garantia a própria estrutura do projeto”. Segundo ele, isso “facilita a execução do projeto com os próprios recebíveis”.
Tipicamente usado para grandes projetos, financiamento non-recourse é um instrumento no qual o credor ou investidor considera, principalmente, as projeções de receita para o pagamento do empréstimo. A garantia nesse tipo de financiamento são os ativos do projeto, o que significa que os patrocinadores não são pessoalmente responsáveis pelos pagamentos do empréstimo no caso de o projeto não gerar lucro suficiente.
Segundo Oliveira, “essas empresas precisam de 20, 30 anos de prazo, e não conseguem captar isso no mercado facilmente”. Para o novo presidente, “o BNDES pode ser o dínamo do mercado de debêntures de infraestrutura”. Prometendo “uma grande mudança cultural”, Oliveira reforçou que o formato de atuação até hoje é diferente do que vai ter daqui para frente. “O grande trabalho será convencer as pessoas dessa mudança e fazer com que comprem esse novo BNDES. Isso não é trivial. O banco tem de se reinventar. Esse é o grande desafio que vai durar os próximos cinco, dez anos. O banco não vai morrer, vai fazer uma transição. Vai atuar de maneira mais ágil e flexível, adaptado à necessidade do seu cliente”, afirmou.
O que isso significa na prática é uma tentativa de retomada dos financiamentos para grandes projetos na Amazônia, sobretudo de energia, em uma lógica que coloca o próprio projeto como avalista de si mesmo.