Vale no centro do conflito de terra em Canaã dos Carajás

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Em Canaã dos Carajás é usual entre conversas de seus moradores a afirmação de que a Vale já comprou mais de 50% das terras do município e de que é “ela quem manda e dá as cartas” por lá. Por que uma mineradora transnacional, entre as cinco maiores do mundo em valor de mercado e a maior produtora mundial de minério de ferro, tem como estratégia concentrar tanta terra em um município?

Parte da explicação está no valor estratégico do projeto S11D, localizado no município de Canaã dos Carajás, para a competitividade da empresa em escala global. O nome S11D deriva da sua localização: trata-se do bloco D do corpo S11, que fica na Serra Sul da grande região de Carajás. Na Serra Norte está a Mina de Carajás. Para fins geológicos, o S11D é apenas um bloco do corpo que foi dividido em quatro partes: A, B, C e D. O potencial mineral do corpo S11 é de 10 bilhões de toneladas de minério de ferro, sendo que só o bloco D possui reservas de 4,24 bilhões de toneladas.

Das 348.8 milhões de toneladas de minério de ferro extraídas pela Vale em 2016,  148.1 milhões vieram de Carajás, mas uma pequena parte veio especificamente de Canaã dado que o projeto S11D que entrou em operação em 2017. Quando estiver em pleno funcionamento, o que deve ocorrer até 2020, somente esta parte D do corpo S11 ampliará a extração em mais 90 milhões de toneladas/ano.

Mas por que comprar e controlar amplas extensões de terras no município passou a ser uma estratégia da empresa?

Não é porque ter terras nas mãos de fazendeiros ou camponeses impeça as mineradoras de extraírem minérios e expandirem a extração a qualquer tempo que o mercado assim sinalizar. Isto o Código Mineral, que é de 1967, garante, uma vez que há uma separação jurídica clara entre a propriedade do solo e do subsolo, que neste último caso é da União e sua exploração se dá  em regime de concessão.

É, essencialmente, porque sob a lógica da empresa parece ser mais barato e “seguro” ter o domínio das terras. Em cima de terra tem gente e quando é muita gente os custos de negociações para a compra tendem a ser maiores, e quando as pessoas estão mais organizadas também são maiores os riscos de resistências e conflitos que tornam a expansão de novos projetos mais complexa e custosa.

Logo, sob a ótica da empresa, sair comprando terra, em especial antes que seus donos ou detentores percebam seu valor estratégico, parece ser um bom negócio. É isto que a Vale vem fazendo. Segundo organizações sociais da região, dezenas de terras de particulares, algumas de proprietários com títulos “seguros” e que venderam sem ter ideia do quanto estas terras eram cobiçadas, outras tantas de pessoas que diziam ser donas, mas que não poderiam vendê-las pois são terras não regularizadas e que pertencem ou à União ou ao estado.

Parte destas terras são hoje reivindicadas por centenas de famílias que ocupam e produzem lá seus alimentos e parte do seu sustento. A reação da Vale não tardou. Contando com a solidariedade do judiciário local e apoio da prefeitura, a empresa conseguiu liminares na justiça para expulsar famílias que estão ocupando  terras cuja a propriedade da empresa é fartamente questionada, inclusive pelos dados do INCRA. O órgão tem realizado um levantamento da situação das áreas ocupadas pelas famílias que a Vale se diz proprietária e identificado que muitas destas áreas são de lotes com titulação não concluída uma vez que não foram quitados.

Na madrugada de segunda (20 de novembro), cerca de 500 trabalhadores ocuparam a rodovia que dá acesso ao S11D reivindicando que a Vale retire todas as liminares de despejo que ameaçam as famílias que ocupam as áreas pretendidas por ela.

Se todas as dezenas de liminares forem executadas, serão mais de 20 mil pessoas despejadas e colocadas em situação de vulnerabilidade. Considerando ainda o domínio de latifundiários, sobretudo da Agropecuária Santa Bárbara, fazenda flagrada com trabalhadores em situação análoga à escravidão em 2012 e ligada a familiares do banqueiro do Daniel Dantas, resta pouco terreno para as famílias acampadas, que sequer conseguem vender a sua produção em feiras da cidade.

“Esta era uma área de projetos de assentamento que não tinham os lotes ainda titulados e quitados, portanto quem vendeu não poderia vender e nem a Vale poderia comprar”, afirma o sociólogo e educador popular Raimundo Gomes da Cruz Neto, do Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp).

Raimundo Neto também afirma que os prefeitos de Canãa e Parauapebas sempre foram submissos a Vale. “Jeová Gonçalves se declarou verdadeiro defensor da Vale nesse processo e por diversas vezes foi para a rádio e TV local se colocar contra os trabalhadores, inclusive ameaçando servidores públicos que estivessem envolvidos nessas ocupações”, afirma.

Mais que isso: a Vale teria doado à prefeitura de Canaã dos Carajás uma área pública de 1.392 hectares, ocupada por pouco mais de cinquenta famílias de trabalhadores sem terra.

Longo histórico de conflitos

A região dos Carajás é, historicamente, palco de intensos conflitos fundiários. O mais simbólico foi o massacre de 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1996, mas o caso está longe de ser isolado.

O último relatório da Comissão Pastoral da Terra mostra que, somente em 2016, 12.829 famílias foram despejadas e 2.639 famílias expulsas no Brasil. Também foram registrados 61 assassinatos no campo, uma média de cinco por mês, número que só perde para 2003 (com 73 assassinatos) nos últimos 25 anos. No Pará, em 2016, foram 1.123 famílias despejadas, 458 expulsas, 1.635 ameaçadas de despejo e 850 com casas destruídas, além de 4.215 casos de pistolagem. No total, foram 18.419 famílias envolvidas em conflitos no estado.

A família de Volney de Souza, que vive no acampamento Serra Dourada, chegou a Canãa em 1989, vinda de Tocantins. No Serra Dourada, produzem diversos produtos como macaxeira, feijão, milho e abóbora. Os moradores, reunidos, conseguiram organizar uma feira livre em Canãa, mesmo sem apoio da prefeitura, que dificultou ao máximo a liberação da licença. “Nós temos uma produção muito diversificada e conseguimos vender por um preço justo, muito melhor que a média do mercado. Mas o prefeito, que é contra nosso movimento, não quer mais ceder espaço e dificulta enormemente a autorização”, afirma Volney.

Quando a Vale começou a assediar os assentados, em meados da década passada, a oferta pelas terras era muito abaixo do valor de mercado. “Eles não nos davam outra opção a não ser vender a terra pelo preço que ela queria pagar. Nós não vendemos e muita gente também não. Sem acordo, ela foi comprando outras terras e muita gente ficou ilhada, refém do seu poder econômico”, conta Volney.

Para ele, Canãa foi amaldiçoada com o seu potencial minerário. O projeto S11D trouxe enorme desemprego, violência e inflação. Um roteiro que sempre se repete Brasil afora. “Quem defendia a mineração hoje entende que não foi uma boa opção. A Vale faz o que quer”, afirma Volney.

“Que justiça é essa que quer despejar centenas de famílias de áreas públicas e dá direito a uma empresa privada? Que prefeito é esse que recebe uma área de conflito como doação onde trabalhadores (as) estão ocupando para dar sustento a suas famílias?”, questiona nota do Movimento em Defesa dos Territórios Livres da Mineração.

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Jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, conflitos socioambientais, povos indígenas, crise climática e direitos humanos. Fundador do Observatório da Mineração. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019) e finalista do V Prêmio Petrobras de Jornalismo (2018).