Isenções fiscais para empresas na Amazônia: mais de 50 anos sem transparência e efetividade

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Em tempo de austeridade, tramita no Congresso o PLS 656/2015, de autoria do senador Eunício Oliveira (MDB-CE), que amplia de 2018 para 2023 o prazo para que empresas com projetos aprovados nas superintendências do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Nordeste (Sudene) tenham direito à redução de 75% do Imposto de Renda (IR) calculado com base no lucro da exploração do empreendimento.

Caso aprovado, o PLS pode significar um rombo de R$ 5,8 bilhões ao ano, valor que pode alcançar até R$ 8 bilhões caso a emenda da líder do MDB no Senado, Simone Tebet (MS), que inclui na proposta os projetos da área da Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco), seja aceita. De acordo com relatório da Receita Federal sobre gastos tributários ao longo de 2018, os descontos do Imposto de Renda concedidos pela Sudam e pela Sudene para este ano somam, respectivamente, R$ 2,351 bilhões e R$ 3,464 bilhões. No total, seriam R$ 35 bilhões de desonerações somente da Sudam e da Sudene de 2018 a 2023 ou R$ 48 bilhões caso seja incluída a Sudeco. De extensão em extensão, essas isenções na Amazônia já somam mais de 50 anos. Tudo isso sob sigilo, sem transparência e sem análise do real impacto social que esses subsídios causam. É com esse tipo de distorção do orçamento público que a campanha #SóAcreditoVendo do INESC quer acabar.

Se você colocar na conta também as desonerações para a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio, que somam R$ 24,4 bilhões – cerca de 9% dos gastos tributários em 2018, sozinha – a dimensão começa a ficar bem clara. Mais grave: o texto original do projeto não diz, com detalhes e de forma clara, como o próximo governo deve suprir esse desfalque, algo que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) exige.

Além do montante envolvido, essa renovação acontece sem uma análise da efetividade da política de isenção tributária que atravessa décadas. Só agora, mais de 50 anos depois, o governo começa a rascunhar um sistema de avaliação, ignorando todo o histórico. Para Grazielle David, assessora do INESC, tudo ainda é feito na base da “confiança”. “É inaceitável a renovação sem conhecer os beneficiários e os montantes recebidos por cada um, para que seja possível termos avaliações socioeconômicas do governo e da sociedade civil sobre a necessidade ou não de renovar essa isenção, e ainda pior, a tentativa de ampliar as isenções para o Centro Oeste”, questiona.

Segundo avaliação do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), os valores agregados dos incentivos concedidos entre 2007 e 2014 somente na Sudam alcançaram R$ 16,5 bilhões. Estes incentivos são um prêmio a mais para gigantes nacionais e transnacionais que exploram recursos minerais amazônicos cobiçados mundialmente.

A análise revela que empresas como a Vale S/A, BHP Billiton e Hydro Norsk estão na lista das corporações beneficiadas com isenção de 75% do IR, todas as três envolvidas em gravíssimas violações socioambientais e crimes de grandes proporções, como o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana (MG) e a poluição deliberada da Hydro em Barcarena (PA).

Alessandra Cardoso, economista, assessora do INESC e autora do estudo, lembra que a mineração é um setor cuja volúpia de crescimento experimentada nas duas últimas décadas, aliada à sua natureza extrativa e impactante, tem ampliado o rastro de destruição ambiental e de violação dos direitos. Rastro esse que se espalha muito além do entorno das minas, alcançando comunidades e regiões afetadas pelas infraestruturas construídas para a exportação dos minérios ou pelo seu beneficiamento.

A redução de arrecadação pode ser ainda maior se estas empresas, adicionalmente, optarem pela utilização de 30% dos 25% do imposto devido para ampliarem suas capacidades de exploração, podendo chegar a 82,5% de isenção do Imposto de Renda devido. Literalmente, um “negócio da China”, classifica o Inesc. Para Grazielle David, “sem uma capacidade arrecadatória adequada os entes federados acabam limitados na sua capacidade de aplicação de recursos próprios na promoção de direitos e oferta de políticas e serviços públicos”.

Adicionalmente, as isenções no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica comprometem diretamente o sistema de transferências de recursos da União para os estados e municípios. Isto porque o Imposto de Renda (IR), juntamente com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), alimenta o Fundo de Participação dos Estados (21,5% do IPI e IR) e o Fundo de Participação dos Municípios (22,5% +1% do IPI e IR). Estudo recente do TCU estimou que cada real de renúncia do IR e do IPI concedido pela União significa uma perda de R$ 0,58 de transferência para os estados e municípios.

Vale lembrar que o IR também alimenta os Fundos Constitucionais de Desenvolvimento (3% do IPI e IR), entre eles o Fundo Constitucional do Norte – FNO. A vasta literatura dedicada às finanças públicas mostra que a capacidade de realização de projetos e ações governamentais de qualquer ente federativo está altamente correlacionada ao volume de recursos arrecadados.

Extensão pode sair pior que a encomenda

O relator do Projeto de Lei que amplia as isenções na Sudam e na Sudene para 2023 na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, Armando Monteiro (PTB-PE), foi favorável à prorrogação, permitindo também que as empresas possam usar, como capital de giro, metade do valor aplicado como reinvestimento nas instituições financeiras locais, os Bancos da Amazônia (Basa) e do Nordeste (BNB).

A emenda de Monteiro também prorroga para 2023 o prazo desse incentivo e determina que os 50% restantes do valor de reinvestimentos aplicados nos bancos oficiais sejam usados na aquisição de máquinas. O parlamentar acatou a alteração proposta pela senadora Simone Tebet, mas frisou que ela foi adicionada em um dispositivo separado, para que, em caso de veto pela equipe econômica do governo, os entes beneficiários originais do PL não sejam prejudicados.

No início do ano, a Sudam lançou um sistema de avaliação de incentivos fiscais que quer coletar informações socioeconômicas das empresas beneficiadas pelos Incentivos Fiscais na Amazônia. A promessa é que a nova ferramenta avalie e monitore os resultados e a efetividade da concessão dos incentivos. O acompanhamento permanente ficará sob a responsabilidade da Coordenação Geral de Avaliação de Fundos e Incentivos Fiscais (CGAVI), criada somente em 2014. Com isso, o próprio governo reconhece sua incapacidade em analisar a efetividade dos gastos tributários da Sudam e só passou a tentar implementar – e mal – um sistema online porque foi pressionado pelo TCU e pela CGU, que exigiram mudanças e uma avaliação confiável.

Até hoje, todos os documentos eram recebidos pelo correio e nenhuma avaliação concreta era feita. Um projeto piloto com 30 empresas incentivadas foi feito em 2018 para ajustar o funcionamento do novo sistema, que só deve passar a valer de verdade em 2019. Em entrevista, o coordenador da CGAVI, Celso Lima, afirma que defende a ampliação dos benefícios por 10 anos e não por 5. Na avaliação dele, “seria o ideal”.

Hoje, a Sudam não tem o detalhamento de valores por empresas, setores, estados e municípios e não analisa o retorno dado para a sociedade, o impacto real, quantos empregos são gerados. “Era difícil de fazer esse controle. A Sudam não dispunha de ferramentas para fazer esse trabalho. Nossa expectativa é que o novo sistema preencha essa lacuna”, afirma Lima. A partir dos resultados, empresas poderão sofrer sanções e até mesmo deixar de receber os subsídios. “Se a gente perceber que tem alguma anormalidade, a gente pode intervir e pedir explicações. Quem não prestar as informações dentro do prazo de acordo com a lei ficará inadimplente com a SUDAM e proibida de receber incentivos, a empresa e os sócios”, promete Lima.

O caso da Coca-Cola é exemplar. A empresa recentemente ameaçou abandonar sua planta na Zona Franca de Manaus caso deixe de receber os benefícios fiscais. Um caso concreto do quanto o governo brasileiro pode ficar refém do poderio econômico que ajuda a criar e sustentar. Liderados pela Coca-Cola, a Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes) ameaça cortar 15 mil empregos diretos caso não recebam os benefícios de volta, como pagar somente 25% do imposto de renda, isenção total do IPI e crédito tributário equivalente a 20% do valor da compra.

Mais que isso: investigação da Receita Federal aponta que a subsidiária brasileira da Coca-Cola superfatura seus produtos para ampliar o lucro na Zona Franca. Há a suspeita de que a subsidiária tenha se valido das vantagens fiscais e superfaturado a venda de seu concentrado para os envasadores. Pelas regras tributárias em vigor até maio, a cada R$ 100 vendidos em concentrado, os envasadores geravam R$ 20 em créditos fiscais, que podem ser usados para abater IR e CSLL.

Na investigação, executivos da Coca-Cola precisam explicar por que a fabricante vende o quilo do concentrado por cerca de R$ 200 no mercado interno se exporta o produto por aproximadamente R$ 20. Como boa parte dos envasadores pertence à própria Coca-Cola, a suspeita é que ela estaria reduzindo ao mínimo o pagamento de impostos e deslocando para o balanço de sua fábrica, na Zona Franca, o lucro do grupo.

Outro caso marcante é a da Hydro Alunorte. A empresa norueguesa, que recebe benefícios fiscais há muitos anos, é acusada de comprovadamente poluir toda a cadeia de produção de extração do minério de bauxita desde Paragominas até Barcarena – cerca de 400km – no Pará, despejando em rios da região metais pesados como arsênio, chumbo e cádmio. Uma CPI foi instalada na Assembléia Legislativa do Pará para apurar as irregularidades, ainda negadas veementemente pela Hydro.

Já foram ouvidos funcionários da Hydro – embora o seu presidente se negue a prestar esclarecimentos – lideranças de comunidades atingidas, institutos responsáveis pelas análises que comprovaram a contaminação do meio ambiente, como o Instituto Evandro Chagas e a Universidade Federal do Pará e outras partes envolvidas. Tomando como exemplo as tratativas do crime ambiental cometido pela Vale/Samarco/BHP em Minas Gerais e no Espírito, que em breve completarão 3 anos, há um longo caminho pela frente, com o poderio econômico e político sempre ditando os rumos das negociações.

Histórico de incentivos na Sudam

Desde a recriação da Sudam, em 2007, a Coordenação-Geral de Incentivos e Benefícios Fiscais e Financeiros (CGIF) concedeu mais de 1.500 laudos constitutivos de Redução de IRPJ a mais de 400 empresas com atividades enquadradas entre os setores prioritários do Governo Federal e localizadas na Amazônia Legal.

No total, desde 2007, mais de 1.800 projetos de incentivos fiscais foram aprovados em todas as modalidades, para empresas situadas em todos os estados da Amazônia Legal. Segundo informações do site da Receita Federal do Brasil, a previsão dos recursos com os incentivos fiscais concedidos às empresas beneficiadas somam aproximadamente R$ 19,5 bilhões.

Amazonas é o estado campeão, com mais da metade (52,6%) das concessões aprovadas, seguido por Mato Grosso (21%) e Pará (12,7%). Representantes da Sudam defendem abertamente a renovação dos incentivos fiscais, inclusive participando de evento na sede da Federação das Indústrias do Estado do Amazonas (FIEAM) e visitando empresas que receberam as isenções após anos de tentativa, como Yamaha e Honda.

A política de isenção fiscal na Sudam beneficia diretamente gigantes de diversos setores, como Amaggi (do atual ministro da agricultura, Blairo Maggi), Ferrous, Ambev, Vale S/A, Heringer, Foxconn, Klabin, LG, Mineração Apoena, Mineração Rio do Norte, Pepsi, Sadia, Samsung, Siemens, TIM, Votorantim, Vivo, Whirlpool, White Martins e outras.

Os valores da isenção dos 75% do IRPJ não são divulgados pela SUDAM, que diz não ter acesso à informação uma vez que só concede o benefício, e nem pela Receita Federal que arrecada o valor reduzido e portando detêm a informação do valor da isenção, mas protege os dados sob a alegação de sigilo fiscal[7].

Já as estimativas da SUDAM sobre os projetos de reinvestimentos aprovados mostram que dos 37 projetos de reinvestimento aprovados entre 2007 a 2012, que são uma proxi dos projetos beneficiados com 75% da isenção do IRPJ, a Vale recebeu incentivos de R$ R$ 374,75 milhões nada menos do que 74% do total de R$ 506,96 milhões dos incentivos concedidos para esta modalidade de benefício. Os últimos dados disponíveis no site da Sudam ainda são de 2012.

Logo atrás vem a Petrobrás que abocanhou outros 12,22% dos recursos aprovados para reinvestimento. Juntas, Vale e Petrobrás receberam 86% do benefício do reinvestimento. Isto significa uma “contribuição” de R$ 436,69 milhões do país para ampliação dos seus investimentos na Amazônia.

É comum a tentativa de defesa dos incentivos fiscais sob a alegação de que esta renúncia tributária em termos de valores acaba sendo mais que compensada em função dos investimentos já que eles geram valor agregado, empregos e movimentam a economia regional e nacional. Assim, alega-se que o balanço tributário destes instrumentos costuma ser positivo. Este discurso, contudo, só se justifica sob a hipótese de que estes investimentos não viriam para a Amazônia se não houvesse o incentivo. Como muitas dessas empresas estão ligadas à exploração de recursos naturais na região, essa justificativa torna-se vazia. Necessariamente as empresas iriam para a região, uma vez que ali está a matéria que exploram.

Considerando que esta é a menor parcela do benefício de redução do IRPJ, os valores, hoje desconhecidos, de quanto o estado brasileiro abre mão deste imposto para estimular só as mineradoras a explorarem recursos minerais finitos a taxas recordes de extração na Amazônia devem adquirir proporções astronômicas.

O curioso caso de Eunício Oliveira

O presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), autor do PLS 656/2015, poderia ser apenas mais um caso de self-made man tupiniquim, da meritocracia, do espírito empreendedor que tanto sucesso faz, mais do que nunca, nas redes sociais, na mente e nos olhos do eleitorado. Mas talvez Eunício tenha algumas lições a mais a nos ensinar do que a sua suposta competência no mundo dos negócios.

Filho de um lavrador, aos 14 anos trabalhava no estoque de uma fábrica de biscoitos. Hoje, é um dos políticos mais ricos do país (é o segundo parlamentar mais rico do Senado, atrás apenas de Tasso Jereissati (PSDB-CE), com patrimônio declarado de R$ 99 milhões (impressionante aumento de três vezes somente entre 2010 e 2014), voa em jatinho particular e é peça-chave no tabuleiro do poder em Brasília, sobretudo desde o primeiro governo Lula, quando foi ministro das comunicações.

Para chegar lá, Eunício deu duro com empresas especializadas em vender licitações, área normalmente já pouco ortodoxa e nebulosa do, por assim dizer, “mercado”. Só na Petrobras, uma firma do senador faturou R$ 978. O maior contrato, de “apoio à gestão empresarial”, teve o valor reajustado nove vezes. Os repasses do Banco do Brasil, do Banco Central e da Caixa somam mais R$ 703 milhões. O valor corresponde aos pagamentos previstos entre 2011 e 2019, período que coincide com o seu atual mandato de senador. As empresas responsáveis são a Confederal e a Corpvs, que prestam serviços de vigilância, limpeza e transporte de valores e integram a holding Remmo Participações, na qual o senador tem 99% de controle, conforme sua declaração de bens mais recente à Justiça Eleitoral.

Além dos citados, as empresas de Eunício firmaram contratos multimilionários também com outros órgãos públicos, como o Ministério da Saúde e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Eunício era também dono da Manchester Serviços, de fornecimento de mão de obra terceirizada, que fechou contratos de quase R$ 1 bilhão com a Petrobrás entre 2007 e 2011 – até 2010, ele cumpriu três mandatos como deputado federal. Em 2011, cinco meses depois de o jornal Estado de S. Paulo revelar manobra da firma para fraudar uma licitação de R$ 300 milhões na bacia de Campos, região de exploração do pré-sal no Rio de Janeiro, Eunício vendeu sua participação na Manchester para outros sócios.

Implicado na Lava Jato, Eunício acumula acusações de diversos delatores por recebimento de propinas, indicações suspeitas e troca de favores nada discretos.

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Jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, conflitos socioambientais, povos indígenas, crise climática e direitos humanos. Fundador do Observatório da Mineração. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019) e finalista do V Prêmio Petrobras de Jornalismo (2018).