Obsoleto, o modelo de grandes hidrelétricas está no fim. O Brasil insistirá nele?

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No mundo todo, os problemas socioambientais decorrentes das grandes hidrelétricas, seu alto custo – e não raro o superfaturamento – e o fato de entregar bem menos do que prometem em potencial de geração de energia, colocam esse modelo em xeque. Tudo indica, de maneira definitiva.

Coloque na balança o preço cada vez menor da geração eólica, fotovoltaica e de outras matrizes sustentáveis e a vida útil questionável de uma grande hidrelétrica. O resultado final é o colapso de um modelo que teve e ainda tem no Brasil seu exemplo maior. Sobretudo na Amazônia, onde as dezenas de projetos previstos acumulam violações socioambientais, conflitos fundiários, a destruição irrecuperável dos territórios e do modo de vida de povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais, especulação imobiliária e violência.

Belo Monte ilustra perfeitamente como um projeto feito a toque de caixa, com licenciamento atropelado, em meio a uma batalha judicial e contra todos os relatórios, alertas e análises feitos por especialistas, pode impactar de modo irreversível uma região. Não é por acaso que Altamira se tornou, em pouco tempo, uma das cidades mais violentas do Brasil. Em 15 anos, a taxa de homicídios no município se multiplicou por 6, passando de 16,8 por 100 mil habitantes em 2000 para 105 por 100 mil em 2015, de acordo com levantamento do Atlas da Violência 2017. Mais: cinco anos após o início da obra de Belo Monte, o índice de crimes contra mulheres quase triplicou. Outras metodologias mostram um índice ainda maior do que o verificado pelo IPEA no Atlas – de 124,6 homicídios por 100 mil – e também relatam a explosão do tráfico de drogas na cidade.

As propinas nestes projetos também são rotina: as empreiteiras que colocaram Belo Monte de pé, projeto que teve seu orçamento estourado várias vezes (orçada inicialmente em R$ 16 bilhões, os custos já superam R$ 30 bilhões), pagaram mais de R$ 134 milhões para partidos como o PT, o PMDB e para políticos como Renan Calheiros, Jader Barbalho e Romero Jucá.

Para Célio Bermann, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Energia, o retorno ao modelo dos grandes reservatórios – após a baixa efetividade das barragens a fio d’água – como é o caso das usinas planejadas na Amazônia, significará uma escala ainda maior na negação de direitos das populações ribeirinhas e indígenas da região. Para ele, há que se incluir neste quadro as incertezas impostas pelas alterações dos regimes hidrológicos decorrentes do processo de mudanças climáticas. “Isto está se verificando em todas as bacias hidrográficas no país, algumas com redução da disponibilidade hídrica ao passo em que outras com seu aumento. O resultado é que as séries históricas de vazões dos nossos rios não servem mais para o cálculo e dimensionamento das usinas planejadas. O que significa maior incerteza quanto a real disponibilidade de energia”, afirma.

Nada disso, no entanto, é exclusividade nossa. Hidrelétricas parecem demandar, obrigatoriamente, um lastro de corrupção e violações. É o que dizem pesquisadores em todo o mundo. Jacques Leslie, por exemplo, em matéria que coloca esse modelo em xeque, cita Thayer Scudder, um antropólogo de 88 anos que fez várias consultorias em projetos de grandes hidrelétricas para o Banco Mundial, considerado um dos maiores experts no assunto.

Scudder diz ter aprendido “que benefícios importantes de grandes reservatórios, no curto e médio prazos, tendem a provocar custos enormes e inaceitáveis no longo prazo em termos econômicos, ambientais e sociais, incluindo mais de meio bilhão de pessoas afetadas em todo o planeta somente entre aquelas que moram nas bacias dos rios impactados”.

Um importante estudo da Universidade de Oxford vai na mesma linha. Depois de analisar 245 grandes reservatórios construídos entre 1934 e 2007, os resultados mostraram que o custo real das obras foi, em média, 94% maior do que o previsto e que os prazos estouraram o estimado em quase 50% dos casos. Só os projetos de energia nuclear apresentam números piores. Em média, o estudo mostra que uma barragem leva cerca de 8.6 anos para ser construída, fazendo com que os políticos responsáveis nem sempre assumam sua responsabilidade do início ao fim do projeto quando as coisas vão mal, já que boa parte deles não estão mais no poder quando a conclusão acontece.

É de se imaginar, contudo, que de lá pra cá os projetos foram aperfeiçoados, as instâncias de governança e gestão também, os planos de redução de danos executados e o avanço da engenharia passaram a compensar essa atração quase irresistível que as hidrelétricas simbolizam para políticos não exatamente bem-intencionados, certo? Errado.

Belo Monte: menos da metade da geração de energia prometida

Desde 2005, a Amazônia passou por três secas que quebraram todos os recordes históricos e também por três anos de inundações extremas. Com isso, Belo Monte produzirá menos da metade do que foi prometido: serão apenas 4,46 dos 11,23 GW que fora construída para gerar, devido a níveis de água insuficientes e à variabilidade climática. As barragens de Jirau e a de Santo Antônio, também na Amazônia, devem produzir apenas uma fração dos 3 GW que foram projetados para cada uma produzir, devido à mudança climática e à pequena capacidade de armazenamento de reservatórios a fio d’água.

As duas usinas, situadas no complexo do Rio Madeira, em Rondônia, também fizeram a festa de alguns nomes bem conhecidos dos brasileiros. Foram quase R$ 130 milhões em propinas, com Aécio Neves, eleito deputado federal por MG, embolsando R$ 50 milhões e Eduardo Cunha, o mentor do impeachment de Dilma Rousseff, hoje preso, levando R$ 20 milhões. O delator Lúcio Funaro também acusa Michel Temer de ter recebido propinas pagas pelas empreiteiras Odebrecht e Andrade Gutierrez no projeto da usina de Santo Antônio, sem citar valores exatos.

Enquanto isso, as barragens construídas impactam todo o ecossistema ao seu redor, liberam grandes quantidades de gases de efeito estufa e atuam como legítimas bombas relógio para as comunidades do seu entorno. Outro estudo, “Energia hidrelétrica sustentável no século 21”, da Universidade de Michigan, lembra que estas represas normalmente tem um tempo de vida limitado em torno de 30 anos, fazendo com que se tornem insuficientes no longo prazo. Diante das mudanças climáticas, se tornam ainda menos viáveis, não importa o quanto o presidente eleito e o seu chanceler neguem a realidade.

A conta, claro, é ainda mais amarga para países em desenvolvimento, como o Brasil. A conclusão, para os pesquisadores, é clara: os benefícios da energia das barragens não superam os custos sociais e ambientais que o represamento dos rios acarreta. Para eles, as rupturas sociais, comportamentais, culturais, econômicas e políticas que as populações próximas às represas enfrentam são rotineiramente subestimadas. Um enredo que a população amazônica conhece bem.

Célio Bermann lembra que no caso dos grandes projetos em andamento na Amazônia, a alegada necessidade de construção de empreendimentos hidrelétricos “à fio-d’água” – sem a formação de grandes reservatórios – motivada por imposições ambientais, conduziu a implantação de usinas com grande capacidade instalada mas baixa energia assegurada, como é o caso de Belo Monte. Segundo o doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos, o que temos visto e ouvido dos representantes do novo governo que têm se manifestado sobre este tema, só é possível esperar o pior.

De acordo com o professor, teremos saudades do Ibama, incapaz de fazer prevalecer nos governos Lula e Dilma as condicionantes ambientais dos projetos hidrelétricos na Amazônia. “Podemos ter certeza que os projetos das usinas hidrelétricas no governo Bolsonaro serão impostos a “manu militari”. E, infelizmente, acompanhados pelo apoio de parte significativa da sociedade brasileira, obcecada pela ideia da necessidade de mais energia para o “progresso” do país. Como aliás, também esteve nos últimos governos”, analisa.

Outro estudo, “Balanceando a energia hidrelétrica e a biodiversidade na Amazônia, no Congo e em Mekong”, mostra bem esse cenário e faz um apelo para governos reverem os protocolos atuais de avaliação de impactos “que observam especificamente o local da obra” e que assim “ignoram amplamente os impactos cumulativos na hidrologia e no ecossistema quanto mais reservatórios são construídos em um mesmo rio”. Os cientistas alertam: “Para alcançar a verdadeira sustentabilidade, as análises dos próximos projetos devem ir além dos impactos locais, levando em conta a sinergia entre diferentes barragens construídas em um mesmo curso d’água, bem como mudanças provocadas pela cobertura de terras (pela água represada) e possíveis mudanças climáticas provocadas.”

É o caso do que está planejado no Complexo Tapajós, no oeste paraense, um conjunto de seis megaprojetos hidrelétricos: São Luiz do Tapajós e Jatobá (no rio Tapajós) e Jamanxin, Cachoeira do Caí, Cachoeira dos Patos e Jardim do Ouro (as três no rio Jamanxin, tributário do Tapajós). As seis hidrelétricas se localizariam no município de Itaituba. A maior delas, São Luiz do Tapajós, logo se tornou o epicentro do maior conflito ambiental em curso no Brasil, mobilizando a resistência do povo indígena Munduruku, de povos tradicionais (sobretudo os que vivem na área de afetação direta do reservatório previsto para essa e outras usinas no médio Tapajós, como as comunidades de Pimental e São Luiz e de Montanha e Mangabal), de movimentos tapajônicos (muitos dos quais do Baixo Tapajós, em Santarém) e redes nacionais e transnacionais de ativismo.

Fonte: A Geopolítica de Infraestrutura da China na América do Sul: um estudo a partir do caso do Tapajós na Amazônia Brasileira

Modelo ultrapassado e tão poluente quanto combustíveis fósseis

Com 217 grandes hidrelétricas em operação e outras 13 em fase de construção ou planejamento, o Brasil gera quase 65% de sua eletricidade com recursos hídricos, além de abrigar algumas das maiores usinas do mundo, como Itaipu e Belo Monte. A Agência Nacional de Energia Elétrica considera Usina Hidrelétrica de Energia (UHE) aquelas que possuem potência instalada de mais de 30 MW e reservatórios com área maior que 3km².

Neste modelo, não estamos sozinhos. Na bacia amazônica, das 412 hidrelétricas construídas, ou que em 2015 estavam em fase de construção ou planejamento, havia 77 no Peru, 55 no Equador, 14 na Bolívia, seis na Venezuela e duas na Guiana. Além disso, há grandes hidrelétricas em construção também no Chile, Argentina, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, El Salvador e Honduras.

Em 2016, os países da América do Sul instalaram, no total, 10 GW de potencial hidrelétrico, quase a mesma quantidade que a China. Mas, segundo a International Hydropower Association, há um “potencial hídrico” ainda três vezes superior aos 1,2 mil GW de hidroeletricidade já instalado na América do Sul. Algo que faz brilhar os olhos de investidores estrangeiros, especuladores e dos políticos que trabalham para facilitar a instalação desses projetos.

Segundo um estudo publicado na revista científica americana Environmental Research Letters, há uma alta probabilidade de que as hidrelétricas de Cachoeira do Caí (PA), Cachoeira dos Patos (PA), Sinop (MT), Bem Querer (RR), Colíder (MT) e Marabá (PA) gerem emissões de gases de efeito estufa comparáveis às de usinas de gás natural, fonte normalmente mais poluente que a hidráulica, mas menos poluente que os demais combustíveis fósseis. Em alguns casos – como os de Sinop e Cachoeira do Caí -, as emissões poderiam até superar as de usinas de carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis.

As emissões em hidrelétricas geralmente ocorrem quando a matéria orgânica presente no solo ou na vegetação submerge durante a formação de reservatórios, produzindo gás metano. Por isso, usinas cujos reservatórios inundam grandes áreas tendem a gerar mais emissões que hidrelétricas a fio d’água, com reservatórios menores e que aproveitam a velocidade natural do rio para gerar energia. A legislação brasileira atual exige a retirada da vegetação de áreas a serem alagadas. Ainda assim, segundo o estudo, quantidades significativas de matéria orgânica permanecem no solo.

Segundo o governo, se mantido o cronograma e a execução de projetos previstos,  hidrelétricas na Amazônia responderão por 85% da potência hidráulica a ser agregada ao sistema elétrico brasileiro até 2022. O mundo considerado desenvolvido vai na contramão: atualmente há mais barragens sendo removidas na América do Norte e Europa do que sendo construídas. Depois de décadas apostando nesse modelo, europeus e norte-americanos se deram conta, na prática, de que o custo socioambiental dessas barragens simplesmente não compensa. Em vez de aprender com o exemplo alheio, até quando o Brasil insistirá em erros comprovadamente evitáveis e sistemáticos?

Um levantamento da World Comission On Dams mostra que, segundo dados subestimados, cerca de 80 milhões de pessoas já foram desalojadas de suas casas em função da construção de barragens e quase meio bilhão de pessoas que vivem ao redor de bacias hidrográficas foram impactadas em todo o mundo. O agravante quadro das mudanças climáticas, com secas mais prolongadas e enchentes mais frequentes, coloca definitivamente em xeque o mito de “energia limpa” que as hidrelétricas carregam. Poluentes, insuficientes no longo prazo, centros de corrupção e superfaturamento, vetores de conflitos socioambientais gravíssimos. Um quadro do qual o Brasil, não importa quem esteja no poder, não pode se esquivar.

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Jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, conflitos socioambientais, povos indígenas, crise climática e direitos humanos. Fundador do Observatório da Mineração. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019) e finalista do V Prêmio Petrobras de Jornalismo (2018).