A história social e ambiental da Amazônia brasileira ao longo dos últimos quarenta anos está profundamente marcada pela instalação e pelos efeitos de grandes obras de infraestrutura, especialmente de transporte e de geração de energia. O conhecimento acumulado sobre as obras do setor elétrico mostra o quanto esse tipo de empreendimento impacta a natureza e as populações humanas situadas na sua área de influência.
Outro dado recorrente nesta história é o grande poder de influência que as empresas construtoras e os interesses em torno da exploração e extração mineral, de petróleo, gás e florestal, e as empresas agroindustriais e de agroexportação, têm no planejamento desenvolvimentista estatal, nos espaços formalmente designados de tomada de decisões ou nas esferas políticas oficiais. A suposta incapacidade do estado de estabelecer regras de procedimento para consultar as comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais nos parece ser a expressão exata e o resultado dos interesses e das regras e hierarquias parcialmente visíveis que configuram esta relação.[1]
Não é raro que ocorra o que Harvey (2008) denominou de acumulação por desapossamento, que na cena amazônica se manifesta na forma de incorporação pelo capital de novas zonas territoriais e da privação do acesso às comunidades tradicionais a parcelas das terras e águas até então utilizadas; a isso segue a privatização e a redução da natureza a condição de recurso natural, ou seja, de mercadoria a ser inserida no mercado global para promover a produção e o crescimento econômico.
Estas obras geram afluxo migratório; promovem deslocamentos e/ou impacto direto nos meios de subsistência de populações tradicionais (como indígenas, quilombolas e ribeirinhos) e de populações rurais; criam um ambiente favorável ao acirramento das disputas pela posse e o controle da terra e territórios; aceleram o processo de desmatamento para implantação de monocultivos (soja, cana, eucaliptos etc.) ou mera especulação; desviam e alteram o curso de rios, podendo gerar crises de acesso e abastecimento de água ao consumo humano e a outros fins de subsistência (o caso Belo Monte é um exemplo disso); têm impacto sistêmico na cadeia alimentar, especialmente na do pescado; provocam a emissão de gases na atmosfera, como o metano, produzido na decomposição da vegetação não retirada da área do reservatório d’água; introduzem novos patógenos e vetores, ou interferem no processo de disseminação da malária, levando ao aumento na incidência dessa e outras doenças infecciosas; e estão associadas com o crescimento exponencial dos casos de DSTs (doenças sexualmente transmissíveis).
A falta de planejamento e o descaso com as condicionantes estabelecidas por ocasião dos licenciamentos geram a precarização dos serviços de saúde pública e a elevação do custo de vida, relacionada especialmente com os itens alimentação e moradia. As ações mitigadoras e compensatórias implementadas pelas empresas de energia hidrelétrica ou pelo setor público, em geral são tardiamente implementadas e visam remediar os efeitos dos impactos negativos. Não raro ocorre um crescimento no número de casos de violência e nos índices de óbito por esse tipo de causa e por acidentes.
A construção e operação das linhas de transmissão de energia (também chamadas de “linhões”) são outro fator de preocupação, por seus múltiplos impactos em termos ambiental, populacional e social. Mesmo nas chamadas “usinas plataforma”, há a necessidade de escoar a produção de energia, conectando a fonte geradora às redes locais, regionais e/ ou ao sistema nacional, de maneira direta. E isso ocorre no terreno, por meio do aproveitamento de vias já abertas na mata (rodovias) ou da abertura e manutenção de corredores desflorestados às vezes por dezenas ou até centenas de quilômetros de extensão. Passando no interior de unidades de conservação, terras indígenas, propriedades privadas etc.
Um exemplo desta história de desapossamento territorial é o caso dos Apinayé, que habitam a região tocantinense conhecida como “Bico do Papagaio”. Ao longo de cinquenta anos viram sua territorialidade e meios de vida sendo restringidos por diversos empreendimentos (Ferrovias Carajás e Norte-Sul; rodovias BR 153, Transamazônica e TO 126 e 134; linha de tensão da UHE Tucuruí; impactos das hidrelétricas de Estreito e Lajeado), aos quais poderá se somar a Hidrovia Tocantins/Araguaia e a ameaça ainda presente de implantação da barragem de Serra Quebrada Rio Tocantins, esta última suprimindo cerca de 14% da Terra Indígena Apinajé. Ademais, enfrentam na atualidade um desmatamento acelerado no entorno da TI, promovido pelas empresas Sinobrás, Eco Brasil Florestas S/A, Cargil Agrícola S/A, Suzano Papel e Celulose S/A com a conivência do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), para o plantio de soja, cana, eucaliptos e implantação de carvoarias no extremo Norte do Estado do Tocantins.
Essas e outras situações e suas consequências e efeitos foram observadas e documentadas em diversas situações na Amazônia brasileira e noutras partes do país e do mundo. [2]
Hidrelétricas na Amazônia: afetando Terras Indígenas
A despeito de todas as evidências e denúncias, o Plano Decenal de Expansão de Energia 2023 (PDE, 2023), que projeta para o período de 2014-2023 uma expansão de mais de 28 mil megawatts (MW) de capacidade de geração de energia a partir da instalação e da entrada em operação de grandes empreendimentos hidroelétricos, considera que nenhuma das 30 UHEs projetadas no país para o período tem interferência direta em Terras Indígenas (TI); também, que onze de 30 UHE estão situadas até 40 km de Terra Indígena na Amazônia Legal e 15 km nas demais regiões. Essa avaliação tem por base a Portaria Interministerial nº. 419/2011, que regulamenta a atuação dos órgãos e entidades da administração pública federal no licenciamento ambiental federal. Já em relação às 232 novas linhas de transmissão (LTs) contempladas pelo Plano, que no conjunto perfazem uma extensão de aproximadamente 41.000 km, o Plano prevê que oito Terras Indígenas serão afetadas. [3]
A partir dos dados e informações armazenadas no banco de dados criado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) no âmbito da iniciativa “Investimentos e Direitos na Amazônia”, constatamos que de um conjunto formado por vinte e três hidrelétricas, em ao menos dezesseis empreendimentos há impactos socioambientais em Terras Indígenas, ou seja, na população que aí vive e/ ou nas condições ambientais e nos meios de que fazem uso e dos quais dependem para sua manutenção e desenvolvimento.
A diferença no resultado se deve a forma como é construída conceitual e materialmente a ideia de impacto ou de interferência. Segundo a legislação vigente, “interferência em TI” ocorre quando uma parcela da Terra Indígena é afetada diretamente pelo eixo ou reservatório da UHE. O critério territorial/ambiental não considera os aspectos humanos e sociais da interferência (ou influência) do empreendimento sobre a população. Do nosso ponto de vista, é necessário haver uma revisão urgente desse indicador.
Ao menos no que se refere às comunidades indígenas, há vários estudos indicando que os impactos indiretos negativos desse tipo de empreendimento podem ser tão ou mais problemáticos e danosos quanto os diretos. A simples notícia de que estão sendo planejadas obras nas proximidades, que pessoas estão andando pela região realizando levantamentos de dados, medições etc. é suficiente para trazer a inquietação e gerar temores ao interior de uma comunidade. A situação na bacia do rio Tapajós é um bom exemplo disso.
Estudos e análises realizadas nas últimas décadas mostram que a interferência desse tipo de empreendimento vai bem mais além da faixa de 10 km no seu entorno. Pode alcançar comunidades antes mesmo de elas terem tido um contato direto, face a face, com as frentes de trabalho de construção da barragem, linhas de transmissão e rodovias. Como explicado por Darrell Posey (1987), as situações de contato podem ser separadas em três categorias com base na natureza epidemiológica da interação:
1) Contato Indireto: inclui a transmissão de doenças sem nenhum intermediário humano, através de insetos e de reservatórios e vetores animais;
2) Contato Intermediário: depende de contato temporário e/ou fortuito com grupos ou indivíduos tais como mercadores, soldados, pesquisadores, funcionários, garimpeiros, seringueiro e outros indígenas que já tenham tido contato com outras pessoas e suas doenças;
3) Contato Direto: que como o próprio nome diz, provém de convívio permanente com missionários, funcionários de órgãos públicos instalados na Terra Indígena, turistas ou mesmo de parceiros de casamento com pessoas de outros grupos já em situação de relacionamento permanente com núcleos urbanos ou com feições urbanas.
A coletânea de artigos organizada Martin Alberto Ibáñez-Novion e Ari Miguel Teixeira Ott (1987) e os estudos bibliográficos de Julio C. Melatti (1987) e Dominique Buchillet (2007), somados ao que foi verificado no Mapa da Fome entre os Povos Indígenas no Brasil (Verdum 1995) e no Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas (Coimbra Jr. 2014), desvelam realidades inúmeras vezes mais complexas e fornecem boas pistas para investigar e explicar a relação entre território, governança, mudanças socioambientais e a situação da saúde física e emocional de indivíduos e comunidades indígena no país.
Considerações finais
Este quadro de pressões e de vulnerabilidades é mais grave quando não são reconhecidos os direitos territoriais coletivos das comunidades indígenas, ou quando a despeito de ter havido o registro fundiário, ou seja, de ter sido criada a Terra Indígena no papel, não são garantidas pelo estado as condições humanas e materiais à governança da sua proteção. Para desestimular as invasões e a depredação ambiental é preciso o estado se fazer presente nessas áreas de maneira adequada e efetiva. A precarização dos serviços prestados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), com cortes sistemáticos efetuados no seu orçamento anual e perda de poder político de decisão nos assuntos sob a sua responsabilidade, em particular em processos de licenciamento ambiental, quando tem de avaliar e se posicionar sobre o impacto socioambiental em determinada Terra Indígena, tem efeitos diretos sobre os direitos territoriais dos coletivos indígenas. Lamentavelmente é isso o que vemos ocorrer de maneira generalizada e sistemática na Amazônia e no restante do país.
Notas
[1] Em janeiro de 2012 o governo federal instituiu um GTI – Grupo de Trabalho Interministerial (Portaria Interministerial nº 35, de 31 de janeiro de 2012) com o objetivo de estabelecer os procedimentos de consulta prévia aos povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais. O GTI foi coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República – SG/PR e pelo Ministério das Relações Exteriores – MRE e contou com a participação de ao menos 26 ministérios e órgãos vinculados. Passados dois anos, em fevereiro de 2014 o GTI encerrou seus trabalhos sem ter alcançado o objetivo.
[2] Vejam por exemplo Davis (1978); Diegues (1999); Dodde (2012); Fearnside & Graça (2009); Koifman (2001); Leonel (1992); Oliveira & Cohn (2014); Posey (1987); Reis & Bloemer (2001); Rocha (2013); Ramos & Taylor (1979); Santos & Nacke (2003); Verdum (1996, 2007, 2012); Verdum, Selau et al (1988); Verswijver & Araújo (2010).
[3] Em 25/03/2015 foi publicada a Portaria Interministerial nº 60, em substituição a 419/2011. No caso de aproveitamentos hidrelétricos (UHEs e PCHs), na Amazônia Legal, o eixo(s) do(s) barramento(s) e respectivo corpo central do(s) reservatório(s) não podem estar a menos que 40 km do limite da TI; e no caso de linhas de transmissão (LT), essa não pode estar numa distância menor do que 8 km do limite da Terra Indígena. Em 30/03/2015 foi publicada pela Funai a Instrução Normativa nº 02 de 27 de março de 2015, que veio para equalizar a atuação da Fundação com o que foi estabelecido na nova Portaria Interministerial.
Sobre o autor: Ricardo Verdum é Doutor em Antropologia Social pela UnB, em estágio pós-doutoral no PPGAS/UFSC. Contato: rverdum@gmail.com