As grandes usinas hidrelétricas têm ocupado um papel central no debate público no Brasil nos últimos anos. Casos emblemáticos como os de Belo Monte, pelo tamanho de sua barragem, os bilhões que movimenta, os impactos evidentes (e ignorados), a corrupção envolvida e a participação até de celebridades em redes sociais, chamam bastante atenção.
Enquanto isso, as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH’s) e as Centrais Geradoras de Energia (CGH’s) costumam passar à margem da discussão. Tidas como obras de menor impacto, estudos recentes mostram que, na verdade, as consequências sistêmicas e proporcionais dessas pequenas centrais são até maiores que as de grandes hidrelétricas. Os rios da Amazônia são os mais afetados, com destaque para o Tapajós.
O lobby no Congresso é tão forte que as PCH’s ganharam até uma Frente Parlamentar Mista exclusiva em sua defesa composta por 238 deputados federais e 27 senadores. Ao mesmo tempo, declarações do presidente Bolsonaro, de que “quer liberar em 2 ou 3 meses as licenças para construir uma PCH” e o debate sobre a Lei Geral de Licenciamento Ambiental em curso tendem a facilitar ainda mais o licenciamento expresso de PCH’s.
Ao todo, o Brasil conta com 1.124 PCHs e CGHs em operação. Outros 1806 projetos estão previstos, com investimentos da ordem de R$ 49 bilhões. São quase 3 mil plantas considerando as em operação, em construção, em estudos e inventariadas. Somente nos rios amazônicos são 87 em operação e 256 inventariadas, segundo a ANEEL.
Em entrevista, os autores da pesquisa “Aprimorando políticas e instrumentos para o estudo de impactos cumulativos de Pequenas Centrais Hidrelétricas na Amazônia”, publicado na revista Energy Policy, publicação científica referência no tema, afirmam que o Brasil vem ignorando os impactos cumulativos dessas obras.
Na avaliação de Amarilis Gallardo (Universidade de São Paulo/Uninove), Simone Athayde (Universidade da Flórida) e Evandro Moretto (USP), há um senso comum e carente de total fundamentação técnico-científica que as PCHs representam menor potencial de causar impactos ambientais significativos quando comparadas às UHEs, os grandes projetos.
Além disso, “a liberação com celeridade desses empreendimentos poderia resultar em significativos impactos tanto sociais quanto ambientais em bacias hidrográficas obviamente com repercussões que poderão ser percebidas nem sempre em curto prazo, mas a médio e até longo prazo”, lembram.
O INESC acredita que a transição para uma matriz energética renovável, segura e sustentável – como a solar e a eólica – é possível e necessária. Iniciativas em curso na Amazônia mostram que isso é viável. Assim, reduz-se a dependência de grandes obras, do impacto sistêmico de PCH’s e também dos combustíveis fósseis e usinas termelétricas a diesel, problema grave na Amazônia. Estudo do INESC mostrou que o governo federal gastou R$ 85 bilhões em subsídios para combustíveis fósseis somente em 2018.
Debate sobre esse modelo é urgente
Para os pesquisadores, diante das intenções do setor em ampliar o uso das PCHs como fonte de energia elétrica no país, “é urgente e prioritário que se estabeleça uma política com diretrizes explícitas e objetivas, pautadas nas melhores práticas, conhecimento técnico interdisciplinar e participação pública, para avaliação ambiental de PCHs e seus consequentes impactos no desenvolvimento local e regional”.
A desconsideração desses impactos é uma ameaça aos serviços ecossistêmicos, à conectividade fluvial, à conservação da biodiversidade e ao modo de vida de comunidades indígenas e tradicionais, alerta a pesquisa.
O caminho para isso, na avaliação dos pesquisadores, passa pela adoção de instrumentos como a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE). Apesar de ser adotada em mais de 60 países no mundo, infelizmente a AAE não faz parte do planejamento e do licenciamento ambiental no Brasil. Há bacias em que as PCHs são contempladas no licenciamento ambiental e, em alguns casos, não, mostrando a fragilidade da avaliação real dos impactos.
O estudo cita que as PCHs normalmente vêm associadas com outras atividades econômicas e projetos de infraestrutura, tais como agronegócio, mineração, transporte aquaviário, linhas de transmissão, estradas e portos. A Bacia do Tapajós, uma das mais preservadas e vulneráveis do Brasil, é um caso destacado.
Qualquer projeto na região deve ser planejado através do uso de instrumentos como a Avaliação Ambiental Estratégica, por um Comitê de Bacia formado paritariamente por representantes da sociedade civil, governo e iniciativa privada, avaliam. “Assim se dá a governança em uma nação democrática. Do contrário, nos parece que há um entendimento truncado da concepção de democracia”, dizem os pesquisadores.
No Pará, MPF questiona processo de licenciamento no rio Cupari
Um dos focos do estudo é um empreendimento no Pará, no Complexo Hidrelétrico do Rio Cupari, afluente do Tapajós, que teve seu licenciamento ambiental federalizado pela justiça justamente por causa da falta de medição dos impactos cumulativos das 8 PCH’s previstas, entre outras falhas.
A procuradora da República Luisa Sangoi, autora da ação e entre os pesquisadores do estudo publicado na Energy Policy, apontou que o Mato Grosso também será impactado pelo projeto, incluindo unidades de conservação. A decisão liminar urgente estabelece que o licenciamento, até então sob responsabilidade da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), terá que ser assumido pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
No total, são 29 PCH’s inventariadas somente na bacia do Cupari. “Como são pequenas, toda a regulamentação pressupõe que o impacto é menor porque as barragens são menores, vão sendo instaladas aos poucos e o impacto não é somado. Mas eles são cumulativos e sinérgicos e não tem previsibilidade nenhuma. Por isso acaba sendo negligenciado”, afirma Sangoi.
Na avaliação da procuradora, existe uma tendência de abrandamento das restrições ambientais e da regulamentação para acelerar a implantação de PCH’s, que são usadas como “uma espécie de rota para fugir da estigmatização que as grandes centrais hidrelétricas tiveram”. Ou seja: empreendedores e políticos, cientes do “desgaste” que projetos de larga escala já trouxeram, tem visto nas PCHS um caminho seguro para passar despercebido pela legislação e pelo debate público.
“Vejo com muita preocupação essa tendência, o que pode levar a impactos seríssimos em regiões ainda não exploradas ou que são relativamente preservadas. Só com uma contra informação se consegue rebater o lobby de setores políticos”, acredita Sangoi.
Pressão aumenta no Congresso
A Frente Parlamentar Mista em Defesa das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e das Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) foi lançada sem muito alarde.
Entre os objetivos declarados dos deputados e senadores estão: criar e manter mercado para as PCHs e CGHs; buscar isonomia de incentivos fiscais como as demais fontes renováveis; adequar as exigências de compensações ambientais para níveis factíveis de ordem técnica e financeira – tendo em vista que o tempo de espera para o licenciamento das PCHs tem sido, em média, de nove anos; ampliar a divulgação no Brasil sobre os benefícios ambientais e financeiros para os municípios e população de onde se instala uma PCH ou CGH.
Para Gallardo, Athayde e Moretto, a configuração de uma frente parlamentar em defesa das PCHs demonstra a relevância do tema e a necessidade que a opinião de especialistas seja considerada. Para os pesquisadores, não é possível pautar mudanças em processos, como o do licenciamento ambiental, baseada nos argumentos citados pelos deputados: da demora, do entrave ao progresso, dos benefícios à população local, das elevadas exigências de compensações.
As questões ambientais são parte inexorável da tomada de decisão de empreendimentos que podem afetar significativamente o ambiente, não se trata de decisão política apena, lembram.
“Todos os argumentos colocados como negativos são tecnicamente refutados por especialistas e comprovados em pesquisas sérias realizadas nacional e internacionalmente. O que pedimos é que as decisões sejam pautadas em evidências científicas e técnicas, em estudos e, principalmente, nos instrumentos de avaliação de impacto ambiental que têm subsidiado a tomada de decisão do desenvolvimento no mundo inteiro”, afirmam.
PCHs têm um impacto maior por megawatt do que os grandes projetos hidrelétricos
O artigo “The Unexpectedly Large Impacts Of Small Hydropower” mostra que as PCHs, na verdade, “têm um impacto maior por megawatt do que os grandes projetos hidrelétricos”. Estudos feitos na Noruega, na Espanha e na China comprovaram isso.
No exemplo da bacia do rio Douro, na Espanha, projetos hidrelétricos com menos de 10 MW causaram quase ⅓ dos impactos hidrelétricos na bacia, enquanto produzem apenas 7% do total de energia gerada. Além disso, as 140 PCHs ali existentes criaram sete vezes mais barreiras (para, por exemplo, a movimentação de peixes) do que as 17 grandes da bacia hidrelétrica, para gerar uma energia 15% mais cara e menos flexível para o atendimento da demanda da rede, cita o autor, Jeff Opperman.
Uma pesquisa recente identificou 82.891 pequenas centrais hidrelétricas operando em 150 países. No Brasil, incentivos e políticas regulatórias têm contribuído para um incremento de cinco vezes no número de Pequenas Centrais Hidrelétricas nos últimos 20 anos.
Tecnicamente, as Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) são empreendimentos de 5 até 30 megawatts (MW) de potência. Já as Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs) vão de 1 até 5 (MW) e os seus reservatórios devem ter menos de 13 km² de área.
Outro estudo recente revelou que existe hoje pelo menos 83 mil barragens de pequenas centrais hidrelétricas no mundo, mais de 10 vezes o número de barragens de grandes usinas. Outras dezenas de milhares de pequenas barragens estão planejadas para um futuro próximo.