“Mas o dragão continua a floresta devorar
e quem habita essa mata, prá onde vai se mudar???
corre índio, seringueiro, preguiça, tamanduá
tartaruga: pé ligeiro, corre-corre tribo dos Kamaiura”
Saga da Amazônia – Vital Farias
É passada a hora de uma discussão aprofundada sobre os impactos em escala da construção das hidrelétricas na Amazônia. Até agora são 23 grandes hidrelétricas (na lista dos Planos Decenais de Energia de 2020, 2021 e 2023) que em conjunto trarão uma nova configuração ambiental, social e territorial para a região.
Ignorando as muitas críticas, denúncias e os impactos visíveis desta escalada de obras, o governo se recusa a um debate alicerçado em informações claras e consistentes sobre a dimensão destes impactos. O caso das hidrelétricas da bacia do Tapajós, apresentadas como projetos isolados, ilustra como está ausente do planejamento dos investimentos uma discussão séria sobre os impactos em cadeia gerados pelas UHEs.
Em contraponto, tais investimentos e seus financiamentos continuam sendo defendidos como estratégicos do ponto de vista tanto da ampliação da geração de energia, quanto da sua importância para a dinamização da atividade econômica.
Esta decisão de governo permeada por contradições, lobbies e investigações policiais não é acompanhada de um planejamento de políticas públicas capaz de avaliar, mitigar e compensar os impactos sociais e ambientais que serão gerados pelas obras.
As experiências recentes com as hidrelétricas no rio Madeira, Belo Monte e Teles Pires mostram o quanto o governo falha ao não planejar o enfrentamento às enormes consequências que estes investimentos provocam em seu entorno.
Falha ao não envolver com antecedência e de forma precautória os territórios afetados na identificação e superação dos impactos.
Falha ao não se estruturar institucionalmente para responder às demandas e pressões que advêm destes investimentos que promove e que subsidia por meio do BNDES.
Mas falha, sobretudo, ao impor à Amazônia os impactos de um padrão de crescimento que a região e sua população não são capazes de suportar sem consequências irreparáveis para a preservação da sua rica e complexa diversidade biológica e cultural.
Os impactos advindos da construção de grandes hidrelétricas são muitos e já conhecidos.
Os impactos migratórios gerados pela atração direta de trabalhadores e indireta de pessoas em busca de oportunidades. Se considerarmos o conjunto das hidrelétricas previstas até agora na Amazônia, qual seria a estimativa do aumento populacional esperado? Estes cálculos simplesmente não existem, assim como não existe qualquer estimativa dos impactos sociais e ambientais decorrentes deste fluxo migratório. Não é demais lembrar que estes impactos se sobrepõem a um quadro de alta precariedade do acesso a bens e serviços públicos (saúde, educação, saneamento, moradia, alimentação, entre outros) e de pressões de diversas ordens sobre os recursos naturais.
Teaser do Documentário “JACI – sete pecados de uma obra amazônica”
Os impactos socioambientais causados pela interferência direta e indireta das obras em Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e, também, pelas populações e comunidades tradicionais que vivem fora destes espaços protegidos.
O desmatamento autorizado pelo Ibama em função das obras, mas também o desmatamento influenciado pela atração populacional e pela dinâmica econômica aquecida em função das obras.
Os Impactos diretos e indiretos em Terras Indígenas, ao lado da incapacidade dos órgãos públicos, neste caso a Funai, de se antecipar ao problema e atuar para um efetivo monitoramento e controle destas pressões.
Impactos ainda pouco conhecidos como os impactos ambientais oriundos de modificações na hidrologia, na carga sedimentar dos rios, da perda de espécies da flora e fauna aquática e das reais emissões de CO2. Exemplo recente do quanto os impactos estão subdimensionados são as cheias do Rio Madeira em escala nunca antes vivenciada pela população local.
Esgotamento do processo de licenciamento
Teoricamente, o processo de licenciamento deveria reunir tanto uma avaliação realista destes impactos, quanto o planejamento e execução a curto, médio e longo prazos, de ações objetivas para sua mitigação. Mas a realidade tem evidenciado a incapacidade dos órgãos envolvidos no processo de licenciamento garantirem o adequado planejamento, monitoramento e cumprimento dos programas e condicionantes acordados com o empreendedor. Entre as muitas lacunas estão evidentes:
- morosidade no cumprimento de acordos entre o empreendedor, os órgãos públicos federais, estaduais e municipais envolvidos no processo de licenciamento;
- estruturas e arranjos institucionais que não garantem o cumprimento de ações definidas no processo de licenciamento;
- casos recorrentes de sub-dimensionamento e fragilidade no monitoramento de impactos por parte do empreendedor;
- falta de transparência na utilização dos recursos previstos para a execução dos programas exigidos no licenciamento, em paralelo à ausência de acompanhamento da dimensão financeira por parte dos órgãos envolvidos.
Somado a tudo isto há uma desconexão entre os investimentos nas obras e o planejamento dos gastos em políticas públicas. Embora o governo federal se empenhe no discurso do seu comprometimento com uma presença mais firme na região afetada pelas obras, pouco pode ser efetivamente percebido pela população local.
Não está presente no planejamento federal, por meio do Plano Plurianual e da execução dos Orçamentos Anuais, o compromisso com metas e recursos suficientes para enfrentar os gargalos de políticas públicas já existentes e expandidos em função das obras.
De outro lado, o governo federal impõe aos seus órgãos, ambiental e indigenista, um mandato que eles não podem cumprir: o de garantir sob as condições legais hoje postas que esta escalada de empreendimentos hidrelétricos seja conciliável com a proteção ambiental e com direitos sociais e territoriais. O grande número de ações judiciais envolvendo projetos hidrelétricos é um reflexo e expressão desta incongruência.
Uma agenda pública de debate
Os impactos sociais e ambientais já em curso; a ausência de ações efetivas do governo nos locais das obras; o desconhecimento dos impactos oriundos do conjunto das obras hidrelétricas impõem a urgência de uma ampla discussão pública sobre o tema.
Beira ao absurdo que depois de tantas lições aprendidas no Brasil, ao longo de décadas, sobre os custos sociais, ambientais e econômicos de planejamentos “capengas e autoritários”, que miraram o crescimento a qualquer custo, o governo federal continue a reproduzir os mesmos paradigmas de planejamento e de crescimento.
É urgente que se abra o debate sobre o atual planejamento de investimentos hidrelétricos do governo federal na Amazônia. Este debate diz respeito não somente às populações e territórios diretamente atingidos, mas a toda a sociedade brasileira.