Não apenas de diversidade em termos de fauna, flora, árvores, insetos e microorganismos se constitui a Amazônia brasileira, mas também de modos de vida humanos, manifestações culturais e técnicas de existência no ambiente. Ou, melhor dizendo, é justamente na interconexão entre estas duas dimensões, humanas e não-humanas, que reside a singularidade e riqueza deste bioma.
Segundo o antropólogo e etnobiólogo William Balée, de tão manejada e acrescida em termos de biodiversidade pelas populações humanas residentes desde períodos pré-colombianos, a floresta amazônica poder-se-ia ser chamada de uma “floresta cultural”, indicando assim a relação necessária entre as práticas tradicionais de uso e habitação da floresta e os processos ecológicos que co-evoluíram em estreita sintonia. Com efeito, embora nem sempre este vínculo seja tomado como norteador das ações governamentais, as políticas de conservação da Amazônia devem estar atentas a estas duas dimensões. Promover a conservação da Amazônia é, portanto, garantir as condições necessárias para que os povos e comunidades tradicionais nela residentes possam continuar manejando seus territórios via suas técnicas compatíveis e tradições ambientalmente adaptadas.
Desde fevereiro de 2007, mediante o Decreto 6.040/2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), estes coletivos humanos responsáveis diretos pela conservação da biodiversidade amazônica gozam de um importante instrumento jurídico para a garantia de seus direitos. É notório que a PNPCT não restringe sua atuação às áreas protegidas, mas também aos territórios indígenas, quilombolas e, importante dizer, à imensa quantidade de territórios tradicionais ainda à espera de regularização fundiária. Ainda assim, cumpre ressaltar que na Amazônia brasileira uma parte significativa destes povos e comunidades habitantes da região têm seus espaços de uso abarcados por Unidades de Conservação (UCs).
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), criado com a promulgação da Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000, classifica as UCs em dois grupos distintos em razão de seus tipos de usos e objetivos de manejo, quais sejam: as de Proteção Integral e as de Uso Sustentável. As primeiras têm como foco a preservação da natureza, permitindo o uso de recursos naturais apenas de maneira indireta, tais como, em maior ou menor grau, a pesquisa científica, o turismo ecológico e a educação ambiental. Neste grupo estão incluídas cinco categorias de UCs, a saber: Estação Ecológica, Parque Nacional, Reserva Biológica, Monumento Nacional e Refúgio da Vida Silvestre.
Já as Unidades de Uso Sustentável visam compatibilizar as estratégias de conservação com as práticas de manejo e produção das populações humanas residentes nas áreas protegidas. Este segundo grupo abarca as seguintes categorias: Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Reserva de Fauna, Reserva Particular do Patrimônio Natural, Floresta Nacional e, por fim, as Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS). Esta duas últimas, em especial, têm seus históricos de desenvolvimento conceitual e implementação política associados a um contexto de lutas socioambientais que correlaciona cientistas, ambientalistas e comunidades tradicionais em prol da garantia territorial, autonomia cultural e conservação da sociobiodiversidade.
As RESEX têm sua gênese marcada pelo movimento em prol da reforma agrária levada a cabo pelos seringueiros do Vale do rio Acre, em especial àqueles do município acreano Xapuri, liderados pela figura de Chico Mendes – à época, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri e representante do Conselho Nacional de Seringueiros. Tal disputa articulava povos indígenas, seringueiros e parcerias científicas nacionais e internacionais, tendo levado a criação da Aliança dos Povos da Floresta, cujo mote centrava-se na criação das RESEX como mecanismo de compatibilização da política de reforma agrária à realidade local das “colocações” – sistema agroextrativista, calcado em unidades familiares de produção, espalhados pela floresta em harmonia com os seringais e castanhais.
No I Encontro Nacional de Seringueiros, realizado em Brasília no ano de 1985, foi lançada a primeira proposta de criação das RESEX, claramente inspirada no modelo das terras indígenas, cuja propriedade é da União e a posse é coletiva e compartilhada. Portanto, ao contrário da lógica preservacionista, a figura jurídica das RESEX é fortemente influenciada pelos paradigmas socioambientalistas que coligam dois princípios basilares: a diversidade biológica, mediante a proteção dos recursos naturais, e a diversidade sociocultural, representada pelas práticas de extrativismo local, de modo a assegurar a apropriação dos recursos naturais pelas comunidades residentes nestas unidades.
Já as RDS têm sua trajetória marcada principalmente pela iniciativa de biólogos preocupados com a conservação dos habitats de espécies faunísticas em risco de extinção, mas que propuseram parcerias às comunidades ribeirinhas locais em prol tanto da conservação ambiental quanto da melhoria das condições de vida humana associadas. A primeira UC incluída nesta categoria foi a RDS estadual de Mamirauá, criada por Decreto do Governo do Amazonas em 1996. Antes, porém, de assumir sua atual definição de uso, a RDS de Mamirauá fora definida como Estação Ecológica a partir da solicitação do primatólogo José Márcio Ayres ao governo do Amazonas em 1984. O interesse fomentador da proposta centrava-se nas estratégias de conservação dos habitats do macaco uacari-branco e do macaco-de-cheiro-de-cabeça-preta, primatas ameaçados de extinção. Localizada a 600 km a oeste de Manaus, a RDS Mamirauá abrange uma área de 1.124.000 hectares em parte ocupados por 1.873 domicílios e 10.867 pessoas moradoras e/ou usuárias da reserva – de acordo com o seu Censo Demográfico de 2011.
Em diferença às RESEX, a definição jurídica das RDS não tem sua preocupação com as populações tradicionais pautada no extrativismo, destinando-se, segundo o SNUC, a “preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações”. Outra diferença importante é que o processo de instituição das RESEX implica, necessariamente, na retirada dos proprietários particulares mediante indenização do governo, ao passo que as RDS permitem a coexistência com terras particulares desde que as mesmas não prejudiquem os moradores da UC. Ademais, além da distinção relativa à centralidade do extrativismo, se a categoria RESEX foi uma inovação a partir das políticas de reforma agrária, a categoria RDS, por sua vez, teve como solo de origem o componente científico da conservação.
Dados gerais de RESEX, FLONA e RDS com populações tradicionais
UC | Quantidade de UC | % | Área (hectares) | % | Nº estimado Famílias | % |
RESEX | 59 | 77,6 | 12.200.000 | 58,3 | 62.094 | 95,50 |
FLONA | 17 | 22,1 | 8.673.000 | 41,4 | 2.742 | 4,21 |
RDS | 1 | 1,3 | 64.500 | 0,3 | 187 | 0,29 |
Total | 77 | 100,00 | 20.937.500 | 100,00 | 65.023 | 100,00 |
Fonte: ICMBio – 2013 Obs: este levantamento desconsidera as quatro UCs de uso sustentável criadas no ano de 2014, quais sejam: as RESEX marinhas de Mocapajuba (21 mil hecatres), Lucindo (26,4 mil hectares) e Cuinarana (11 mil hectares), localizadas na região amazônica; e a RDS Nascentes Geraizeiras (38.177 hectares) no bioma Cerrado.
Ambas categorias, entretanto, podem e devem ser vistas como estratégias de continuidade entre a conservação da diversidade biológica e da diversidade sociocultural. Segundo dados fornecidos pelo ICMBIO, 55% das 313 UCs federais se incluem no grupo de Uso Sustentável, sendo que nestas áreas residem algo em torno de 65 mil famílias que utilizam seus territórios e os recursos naturais como condição necessária para sua reprodução física, sócio-cultural e econômica. Já especificamente na Amazônia brasileira existem atualmente 47 RESEX, sendo 42 federais e 5 estaduais; enquanto as RDS compõem a quantia de 1 federal e 18 estaduais.
O primeiro passo para que os povos e comunidades tradicionais residentes nestas áreas de uso sustentável sejam beneficiários das políticas específicas é o Cadastro Único – instrumento do governo federal que identifica e caracteriza as famílias de “baixa renda”, isto é, com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa ou renda mensal total de até três salários mínimos. Dados do ICMBIO informam que as 77 UCs de uso sustentável já têm 100% das suas 65 mil famílias cadastradas, facilitando a gestão das mesmas, a identificação das atividades de manejo e produtivas, bem como a articulação institucional para o acesso às políticas públicas.
Sobre o autor: Guilherme Moura Fagundes é antropólogo, doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília (UnB).