Desde a época em que era deputado federal Jair Bolsonaro, que “tem o garimpo no sangue”, manifesta seu compromisso de abrir as terras indígenas para a exploração mineral. Agora presidente, seu governo não perdeu tempo em anunciar suas intenções. No caminho, existe um “inconveniente” que não tem sido impedimento para inúmeras ações de Bolsonaro e sua equipe: a Constituição.
Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, anunciou em um dos maiores eventos do setor mineral, em março no Canadá, que o governo quer permitir a mineração em terras indígenas e em zonas de fronteira, além de abrir para mineradoras privadas a atividade de pesquisa relacionada a minerais nucleares. Segundo Albuquerque, a impossibilidade de mineradoras atuarem nessas áreas atualmente as transformam em “hubs de conflitos”.
A situação se agravou recentemente com a invasão da TI Wajãpi no Amapá por garimpeiros e o assassinato da liderança indígena Emyra Wajãpi, que repercute internacionalmente. Em resposta, o MPF reuniu-se com outros 5 órgãos, incluindo Exército e Funai, para criar gabinete de gerenciamento de crise e esclarecer as circunstâncias da morte. A PF enviou efetivo ao local com alguns dias de atraso.
De acordo com nota do Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina divulgada hoje, 29 de julho, não tinha mais ninguém no local quando a polícia chegou, apenas rastros. A comitiva se limitou a tirar fotos e marcar pontos no GPS e disseram que as buscas iriam continuar apenas por imagens de satélite dadas as dificuldades de acesso e alimentação.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede), que é do Amapá, acusa o governo Bolsonaro de incentivar invasões de terras indígenas para a exploração de minério e causar situações como essa. Victoria Tauli-Corpuz, relatora da ONU para os Povos Indígenas concorda que as políticas e as declarações do governo federal interferem diretamente na questão. Michelle Bachelet, Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, também cobrou o governo brasileiro e pediu para que a abertura de reservas para exploração seja reconsiderada. A preocupação é que “uma onda de violência” possa emergir diante das propostas de Bolsonaro. Pelo menos 14 terras indígenas foram invadidas somente em 2019 segundo levantamento de fevereiro da Repórter Brasil.
Em abril, durante uma transmissão no Facebook, Bolsonaro confirmou a intenção e foi além, usando, para variar, dados da sua cabeça e acusações que não encontram lastro na realidade. “Em Roraima, tem trilhões de reais embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso de forma racional. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica. Se Deus quiser, vamos tirar o índio da escravidão de péssimos brasileiros e de ONGs internacionais”, disse o presidente. Bolsonaro também admitiu que uma das motivações para indicar seu filho, Eduardo Bolsonaro, para embaixador nos EUA é justamente a possibilidade de negociar com empresas estrangeiras a exploração de terras indígenas.
Para Enock Barroso Tenente, coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que representa mais de 49 mil indígenas de 241 comunidades e oito povos do estado, o governo Bolsonaro pode “falar o que quiser”, mas é preciso conversar com lideranças de verdade, não com indígenas que são “papagaios de políticos”, se referindo à comitiva que participou da transmissão com o presidente.
“Não somos fantoches igual ele é. Temos a nossa própria política, a nossa história, e respeitamos isso. Nosso modelo de subsistência é construído em cima do que queremos nas nossas comunidades e mineração não faz parte disso”, afirma.
Essa construção, lembra Enock, que é do povo Taurepang, é feita coletivamente há muitos anos. A partir de uma série de reuniões comunitárias é montado o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), que orienta o modelo sustentável em cada comunidade e terra indígena de Roraima. Cada plano pode contar com a assessoria técnica da Funai, do Ministério Público Federal e de universidades, que são convidados a participar da discussão coletiva.
“Se o governo quer realmente ouvir, a gente começa a dialogar já apresentando documentos. Não está só na teoria, tá na prática. Se ele quer realmente um país que contribua para o PIB, nós estamos dispostos, mas da nossa forma e não da forma esdrúxula que ele tenta nos impor”, diz Enock.
No Congresso, Bolsonaro enfrentará resistência
Mais de 20 projetos de lei no Congresso tentam autorizar a mineração em terras indígenas. O principal deles, que tramita desde 1996, é do ex-deputado e ex-senador Romero Jucá, também de Roraima.
O PL 1.610/1996, que ficou parado por 16 anos, teve um substitutivo de 2012 apresentado pelo relator Édio Lopes, deputado do mesmo MDB-RR de Jucá, historicamente ligado ao garimpo. O PL encontra-se em fase adiantada de tramitação e pode abrir caminho para a exploração mineral de 117 milhões de hectares de terras indígenas, mesmo quando as populações destes territórios se opuserem a mineração em suas terras.
Os artigos 176 e 231 da Constituição de 1988 autorizam a exploração desde que exista uma legislação específica, exatamente a motivação do PL de Jucá. Por exemplo: 92,6% da TI Baú e 54,9% do território ianomâmi são requisitado por mineradoras, de acordo com levantamento da Agência Pública. Mais de 4 mil processos minerários incidiram em 177 terras indígenas entre 1969 e 2016.
Para Joenia Wapichana (Rede-RR), primeira deputada federal indígena da história, o governo Bolsonaro tem que conhecer a lei primeiro para entender que não depende meramente da sua vontade abrir a mineração em terras indígenas.
“A realidade é que existe uma pressão do Bolsonaro contra os indígenas. Ele quer a destruição das terras indígenas e o extermínio dos nossos povos. Essa é a posição de um governo que não conhece a legislação e não conhece a realidade dos povos indígenas. O que vamos fazer é defender os procedimentos legais para que todos os passos sejam dados dentro da lei”, afirma Joenia.
O Estatuto dos Povos Indígenas, lançado em 2009 após anos de discussões, coloca vários impedimentos para a mineração em terras indígenas. Segundo o Estatuto, “é vedada a pesquisa e a lavra de recursos minerais em terras indígenas não demarcadas, ocupadas por indígenas isolados e de contato recente, invadidas, ou em situação de conflito”. É garantido “o amplo acesso aos processos de autorização, pesquisa e concessão de lavra e a efetiva participação em todas as fases do procedimento”, assim como uma nova consulta aos indígenas antes que a lavra seja iniciada.
O documento afirma também que a pesquisa e a lavra de recursos naturais em terras indígenas não poderão ser feitas 1) quando inviabilizarem a continuidade do modo de vida, das tradições, dos costumes e das crenças das comunidades indígenas afetadas; 2)quando incidirem sobre monumentos históricos, culturais, religiosos e sagrados; 3) em locais de moradias das comunidades indígenas a serem definidas pelos laudos antropológicos e estudos prévios de impacto ambiental.
Uma importante instância que pode frear os excessos do Executivo é a recém lançada Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, que conta com 219 deputados federais e 29 senadores. Os 248 parlamentares, no entanto, são de diferentes partidos, incluindo os que teoricamente fazem parte da base de Bolsonaro.
A mineração não entrou na discussão do grupo até o momento, explica Joenia, mas isso deve ocorrer em breve. “Certamente haverá uma discussão sobre esse assunto, que precisamos pautar. Espero que ela preze pelos princípios da constitucionalidade”, acredita a deputada.
Para procurador da República, cláusulas pétreas estão em jogo
De acordo com Luis de Camões Lima Boaventura, procurador da República que atua na região de Santarém, no Pará, as terras indígenas estão protegidas por cláusulas pétreas da Constituição que, portanto, não poderiam ser infringidas ou alteradas.
Pela Constituição, as reservas tradicionais demarcadas são de usufruto exclusivo dos indígenas, incluindo as riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Para o procurador, não há PEC ou Lei Complementar que dê conta das intenções do governo Bolsonaro, mesmo se ele contasse com a autorização dos povos indígenas de acordo com a consulta livre, prévia e informada, o que não é o caso.
“Eu vejo uma dificuldade tremenda de acomodação jurídica dessa intenção do atual governo federal. Se você libera essa área cujo um dos pilares é o usufruto exclusivo você está desnaturando na minha concepção o próprio conceito constitucional de terra indígena e retira totalmente a ideia de tradicionalidade desse território”, afirma.
Para Camões, um dos autores do estudo “Reminiscências Tutelares”, o regime jurídico de uma terra indígena não se enquadra nos regimes atualmente existentes que poderiam permitir a exploração mineral em larga escala. A Constituição só pode ser interpretada a favor dos povos indígenas e não como brecha para o enriquecimento de determinadas pessoas, o que se enquadraria no regime jurídico de terras privadas, incompatível.
“Muitas das garantias e concepções de território indígena da Constituição atual são cláusulas pétreas, imodificáveis. O governo precisaria de outra Constituição, não de uma PEC”, reforça.
De acordo com Camões, muito se fala em “ausência” do Estado na Amazônia. Mas essa concepção é equivocada. A omissão é proposital, afirma. E o quadro já tem piorado bastante com o atual governo. “As terras indígenas estão no olho do furacão do governo atual. Não é conjectura, são declarações claras da atual gestão. Porque são áreas que concentram jazidas auríferas importantes e são áreas que estão fora do mercado. Como a legislação veda essa exploração, um outro caminho é a fragilização da fiscalização”, lembra.