A reprodução de um sistema concentrador de renda, aliada a uma visão centralizadora de conhecimento, que considera as regiões Sul e Sudeste mais desenvolvidas do que o resto do país, perpetua a elaboração e efetivação de políticas públicas socialmente excludentes e impede que mais recursos sejam distribuídos de maneira mais justa. Para a professora Flávia Marçal, organizadora do livro ‘Direito Humano à Educação na Amazônia: Uma Questão de Justiça’, se o conhecimento de camponeses, indígenas, trabalhadores, mulheres, negros, homossexuais e jovens de baixa renda fosse devidamente respeitado e valorizado, poderia produzir mecanismos mais justos e igualitários e emancipatórios de desenvolvimento, inclusive educacionais.
Conversamos com a professora Flávia, que é também advogada e conselheira da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, para entender melhor o que motiva a falta de investimentos em políticas públicas sociais e como isso potencializa as múltiplas violências sofridas cotidianamente por milhares de pessoas.
É o que acontece, por exemplo, na região amazônica, que tem os piores resultados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado em 2013. Isso reflete as graves violações de direitos humanos, seja pela disputa pela terra ou pelos impactos sociais e ambientais gerados por grandes projetos de infraestrutura, e pelos anos de invisibilidade no acesso a políticas públicas.
Confira na entrevista:
Sabemos que grandes projetos de exploração hídrica e mineral na Amazônia, como é o caso de Belo Monte e Carajás, ambos no Pará, carregam em si grandes violações de direitos humanos. Como você avalia esse cenário de violações na região?
Há um histórico de perdas e danos que marcam a região. As políticas apresentadas até o momento – desde Plano de Valorização Econômica da Amazônia, na década de 1930, passando pelo Plano de Integração Nacional , na década de 1970, Programas Brasil em Ação e Avança Brasil, na década de 1990, até o atual Plano Amazônia Sustentável, dos anos 2000 – não foram capazes de modificar esse quadro porque permanecem voltadas para a lógica predatória, e a visão da Amazônia como fornecedora de matéria prima, essencialmente minérios e energia. No caso da Amazônia Paraense, de qualquer lugar que se fale, volta-se sempre a uma visão difundida de ser esta a região que tanto orgulha os brasileiros por sua vastidão e riqueza ímpar, o que lhe confere a posição de região estratégica para o desenvolvimento do país. No entanto, essa posição nem sempre consegue enfatizar as graves violações de direitos humanos que aqui ocorrem, com crescimento da pobreza e exclusão de parcelas significativas da população, além de um alto grau de desorganização fundiária e crimes ambientais.
Como isso se reflete nas condições de vida da população?
É preciso salientar que este modelo de ocupação da Amazônia, baseado no esgotamento e na ausência de sustentabilidade e continuidade das políticas econômicas e sociais aportadas na região, gera um quadro desolador, com a ausência de serviços essenciais à população, como saneamento básico. Segundo dados da PNAD 2014, apenas 45% dos domicílios paraenses possuem fossa séptica, e apenas 5,3% possuem rede coletora de esgoto. O resultado deste contexto pode ser avaliado a partir do resultado do Índice de Desenvolvimento Humano-IDH divulgado em 2013. Segundo o PNUD, dos 10 piores IDHs no Brasil, três são municípios do Pará, (Melgaço, Chaves e Bagre). Além disso, todos os 10 municípios com pior IDH estão na Amazônia, se considerarmos a Amazônia Legal. Por outro lado, entre as 50 cidades com maiores IDHs do país, nenhuma está na Amazônia. Na classificação geral, o Pará ocupa o penúltimo lugar no IDH brasileiro. Por fim, a cidade com o pior IDH fica no Pará – Melgaço, onde quase 50% da população é considerada analfabeta. Portanto, tratam-se de direitos básicos, fundamentais, que são diuturnamente negados. Temos, então, o cenário de uma dignidade da pessoa humana continuamente multilada.
O livro “Direito Humano à Educação na Amazônia: uma questão de justiça”, aborda a dívida do estado brasileiro com os povos da Amazônia. Que dívidas são essas e por que elas existem?
Seria possível discutirmos vários aspectos desta dívida, mas eu gostaria de salientar um ponto que considero basilar como fator de mudança do cenário de violações que apontei anteriormente. Esse fator é a necessidade de superação de uma dívida educacional que o estado brasileiro tem com a Amazônia.
Diferentemente de outras nações, o Estado brasileiro pouco investiu em toda sua história, na formação de uma infraestrutura adequada à sua extensão territorial e seu contingente populacional, e quando o faz no caso amazônico, o faz de forma danosa social e ambientalmente, por meio de rodovias, hidrovias, hidrelétricas, cujo objetivo é aprofundar a exploração e exportação dos seus recursos naturais. Em outras palavras: em mais de 500 anos de existência, poucas foram as iniciativas que possibilitaram a consolidação de um quadro de professores devidamente qualificados, a produção de materiais didático-pedagógico adequados ao pleno aprendizado, e a própria formação de uma rede de prédios, laboratórios e centros de pesquisa, entre outros elementos de infraestrutura, que possibilitassem a construção contínua de uma rede de fortalecimento da educação na região. Veja como exemplo o fato de que o Estado do Pará, com 144 municípios, uma extensão territorial de mais de um milhão de quilômetros quadrados, e uma população de mais de 8 milhões de habitantes, somente passou a contar com uma segunda Universidade Federal no ano de 2010, com a criação da Universidade Federal do Oeste do Pará. Em 2013, foi criada a Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará). Ainda que houvesse um processo de interiorização das universidades existentes (Ufpa e Ufra), foi somente a partir deste processo de reestruturação da educação com a criação de novas universidades, que foi possível ampliar efetivamente o número de vagas no ensino superior no interior do estado. Outro dado significativo é o número de doutores presentes na região. Segundo dados do CNPQ, a região norte detém o menor número de doutores do país. Em 2014, o número de doutores na região Norte foi de 6.863, enquanto que na região Sudeste, que concentra o maior número de doutores no país, este número foi de 66.702 doutores. (Nordeste: 26.467, Sul 28.612 e Centro Oeste 11.628).
Assim, há problemas de ordem macro a serem solucionados (o modelo de desenvolvimento é um deles), como há problemas internos ao sistema educacional, como por exemplo, a necessidade da inclusão digital pela educação, o direito ao transporte escolar, a diversidade na escola, merenda escolar, entre outros. Não estou aqui atribuindo somente à escola, ou a ela mais do que a outras causas, a reprodução da desigualdade que caracteriza a formação social brasileira e da Amazônia. O que pretendo apontar é como a reprodução de um sistema de concentração de renda, aliada a uma visão centralizadora de conhecimento, que considera as regiões Sul e Sudeste como mais desenvolvidas do que o resto do país, perpetua a elaboração e efetivação de políticas públicas socialmente excludentes desenvolvidas pelo Estado e impede que mais recursos sejam redistribuídos de maneira mais justa. São questões que precisam ser revisitadas do ponto de vista histórico e social de modo que haja uma efetiva ação em favor de um país mais igualitário.
Da educação que se tem para a educação que se quer: qual o contexto social e político da educação na Amazônia?
No caso da educação, resta claro a situação paradoxal que o país e, especialmente, a Amazônia, estão inseridos: por um lado, convive com elevados números de analfabetismo absoluto e funcional, sem contar as baixas taxas de conclusão dos ensinos Fundamental e Médio e, por outro lado, esses dados não desencadearam no Estado medidas efetivas de redução das desigualdades regionais.
Com a população mais jovem do país (48% da população entre 0 e 29 anos), torna-se mais difundida a ideia de que a educação representaria uma via de superação das desigualdades na Amazônia, tanto regional quanto entre indivíduos da sociedade. Na prática, infelizmente, o que observamos é que suas possibilidades, enquanto direito efetivamente garantido, continuam a ser diuturnamente cerceadas.
Um ponto importante decorre de opções de ordem econômica e política que repercutem de forma incisiva na seara educacional e que precisam ser ponderadas em favor de uma distribuição de verbas e mecanismos de melhor gestão educacional que recupere o histórico de desigualdade que tem marcado as regiões Norte e Nordeste do país.
As potencialidades da Amazônia em pleno século XXI não podem mais estar atreladas somente à sua condição de fornecedora de commodities. A experiência dos povos tradicionais que habitam a Amazônia tem muito a ofertar em favor de um modelo de desenvolvimento mais solidário e humano.
A violação de direitos afeta principalmente crianças, jovens e mulheres. Quem são os grupos menos visíveis neste processo?
Os povos tradicionais da Amazônia, especialmente os grupos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e camponeses são, sem dúvida, os mais atingidos, especialmente quando tratamos das regiões mais interioranas.
Nos núcleos urbanos, especialmente aqueles que estão no entorno de grandes projetos (como Altamira, Parauapebas e Itaituba, entre outros) há uma intensa violação de direito de crianças e adolescentes, além da exploração e tráfico de mulheres. Dados do Disque-100 do primeiro semestre de 2015 indicam que o Estado do Pará foi o estado com maior número de denúncias (1.915 relatos) de violações de direitos humanos, dentre os estados da região Norte.
Além disso, a Comissão Pastoral da Terra divulgou no inicio deste ano dados que indicam o Pará como líder no ranking de trabalho em condições análogas a de escravo. Nos anos de 2014 e 2015, foram investigados 22 casos de trabalho análogo ao escravo no Estado do Pará, o que resultou no resgate de 118 pessoas. Esses números certamente são muito mais elevados, se considerarmos os rincões não alcançados na Amazônia. São camponeses, indígenas, trabalhadores, mulheres, negros, homossexuais, jovens de baixa renda, cujo conhecimento e contribuição, se devidamente respeitado e valorizado, poderiam ter produzido mecanismos muito mais justos e igualitários e emancipatórios de desenvolvimento, inclusive educacionais. Entretanto, na prática, estes grupos ocupam espaços cuja precariedade, motivada pela ausência de investimentos em políticas públicas sociais, potencializam as múltiplas violências sofridas cotidianamente.
Como isso afeta o desenvolvimento humano dos povos da Amazônia?
Sem soluções em curto prazo, a sociedade amazônica vê o crescimento exponencial de problemas básicos como saúde, educação, saneamento, mobilidade urbana caótica, além do recrudescimento da violência na região (atualmente o Pará ocupa a 10ª posição no Mapa da Violência), inclusive com a maior criminalização de defensores de direitos. Nesse contexto, segundo o estudo “Segurança Pública e Justiça: direitos Humanos na Amazônia”, lançado pela SDDH em 2015, o Pará apresenta ainda o maior número de pessoas ameaçadas no país, e também o maior número de pessoas incluídas no programa de Defensores de Direitos Humanos. No caso de assassinatos contra trabalhadores rurais, lideranças e defensores de direitos humanos, e julgamentos no Pará, temos 488 casos, com 644 vítimas. Desse total, apenas 21 casos foram julgados.
Trata-se de um contexto de múltiplas barreiras, mas que tem trazido à baila tensões históricas na Amazônia em si e entre a região e o resto do país. Este contexto todo tem significado também a busca por mecanismos de superação, cujo protagonismo tem ocorrido justamente por estes grupos excluídos, que aguerridamente têm ocupado os parcos espaços disponíveis. É uma clara opção de resistência a um elixir homogeneizador e uma busca pelo olhar que contemple os que aqui vivem. A consubstanciação destas lutas, inclusive com a produção técnica dos movimentos sociais, são instrumentos claros de empoderamento, de pressão e de repercussão de nossas lutas e anseios por uma Amazônia mais digna e justa.
Para adquirir o livro “Direito Humano à Educação na Amazônia: uma questão de justiça” entre em contato com a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos pelo telefone (91) 3241 1829.
Sobre a entrevistada: Flávia Marçal é advogada, doutora em Ciências Sociais pela UFPA, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia e conselheira da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.