Reservas Extrativistas na Amazônia Brasileira: distante da consolidação

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A luta de Chico Mendes, dos seringueiros, dos trabalhadores rurais organizados em sindicatos, da Comissão Pastoral da Terra e aliados dos povos da floresta pelo reconhecimento do direito de permanecerem nas terras por eles ocupadas e delas tirarem seu sustento resultou na criação da figura jurídica das Reservas Extrativistas – RESEX.

Hoje na Amazônia brasileira estão reconhecidas pelo governo federal 42 RESEXs, uma área protegida que soma 8.278.605,79 hectares, o equivalente a quase dois estados do Rio de Janeiro. Estas reservas, juntamente com as demais Unidades de Conservação na Amazônia, também são parte importante da política brasileira do clima. Os compromissos legalmente assumidos pelo governo brasileiro de redução sustentada do desmatamento na Amazônia dependem da capacidade de manutenção destas áreas protegidas. Logo, no discurso por aqui e pelo mundo afora, a conquista dos seringueiros entra na conta e na fama do Brasil como um país comprometido com a redução do desmatamento, com a preservação da Amazônia e, adicionalmente, com o desenvolvimento sustentável.

Mas, para além da importante decisão política de criação das RESEXs, o que o governo federal tem feito para que elas cumpram seu papel de preservação da biodiversidade e para que as populações que lá residem possam viver dignamente, superando um passado de exploração, violência e de violação dos seus direitos? Muito pouco!

O Instituto Chico Mendes, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, é o órgão com a atribuição de executar parte importante da política pública para estas áreas protegidas. Está sob sua responsabilidade duas ações chaves “Apoio à Criação, Gestão e Implementação das UCs Federais”(Ação 20WM) e a “Fiscalização ambiental em UCs” (Ação 20WO). Além destas, também está sob a responsabilidade do órgão conduzir as ações necessárias para garantir que as UCs sejam regularizadas, resolvendo os históricos conflitos fundiários e garantindo a necessária segurança jurídica para que as famílias  possam tocar suas vidas, gerindo coletivamente as reservas com base em planos de manejo coletivamente construídos.

Mas os recursos financeiros e humanos do ICMBio para executar esta política são absolutamente insuficientes. Os números do orçamento público mostram o que as populações que lá vivem já sabem, que as RESEXs vivem à míngua de políticas públicas.

Para o conjunto das 42 RESEXs na Amazônia o ICMBio gastou em 2014 “na ponta” apenas R$ 2.98 milhões. Quer dizer, para fiscalizar e garantir as condições para a adequada gestão – o que incluir, construir, aprovar e implementar os planos de manejos das reservas – de uma área de 8,27 milhões de hectares o governo federal gastou não mais que 3 milhões de reais em 2014.

Esse valor é produto da somatória das duas ações orçamentárias (20WM e 20WO) que irrigam de recursos financeiros as Reservas. Quer dizer é o quanto de dinheiro do orçamento federal chega efetivamente para que o gestor de cada unidade possa não só manter o escritório funcionando, mas também garantir as condições para que as reservas sejam fiscalizadas e sua gestão seja eficiente.

Importante dizer que a gestão das RESEX não é obra e graça apenas do empenho dos poucos funcionários do ICMBio que trabalham nos escritórios locais e nas coordenações regionais de Porto Velho, Manaus, Itaituba e Belém. A gestão e a fiscalização dependem fundamentalmente de um rico e complexo trabalho das comunidades e de suas lideranças que na maioria das vezes têm assento nos Conselhos de Gestão das RESEX, instâncias deliberativas fundamentais no processo de elaboração e implementação dos Planos de Manejo das RESEX.

Apoiar o funcionamento destes Conselhos e fortalecê-los para que tenham condições de cumprir o seu papel estratégico deveria ser uma entre outras ações de política pública da mais alta relevância. Mas os números do orçamento mostram porque a vida real é bem diferente do discurso governamental.

Distante da Regularização Fundiária

Além dos recursos insuficientes para a gestão e fiscalização das RESEXs, existem problemas graves decorrentes de conflitos fundiários em função da sobreposição de áreas declaradas como UCs, mas que também estão dentro dos limites de Terras Indígenas e Territórios Quilombolas.

Segundo dados do ICMBio fornecidos ao Inesc, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), em fevereiro de 2015, “os dados compilados até o momento indicam a existência de 32 Unidades de Conservação com sobreposição a Terras Indígenas declaradas e homologadas“. “Em relação à sobreposição com Territórios Quilombolas, verificou-se até o momento a existência de 13 territórios delimitados, porém não titulados, sobrepostos a Unidades de Conservação“.

Nestes casos de necessária compatibilização de direitos territoriais, a articulação e o trabalho conjunto dos órgãos envolvidos (ICMBIO, FUNAI, SEPPIR) é fundamental para que os conflitos possam ser adequadamente mediados e resolvidos.

São ainda mais graves os conflitos com proprietários e “supostos proprietários”, visto que muitas destas terras são griladas. Neste caso o ICMBIO, apesar de afirmar ter concluído em maio de 2014 o levantamento das sobreposições junto às 313 (trezentos e treze) Unidades de Conservação em todo território nacional, alega que os dados ainda estão na fase de compilação, conferência e validação.

Foto: MTE

Estas sobreposições muitas vezes vêm acompanhadas de relações de exploração de mão de obra e dos recursos naturais em benefício privado dentro das RESEX. Exemplo recente da desordem fundiária e violação sobreposta de direitos é o caso de trabalho escravo em castanhais do interior da RESEX Médio Purus, em Manaus. Lá, fazendeiros ligados à política local, inclusive um ex-prefeito, tratam castanhais e pessoas como propriedade privada. Em março de 2014, em uma operação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal foram resgatadas, no interior da reserva, 21 pessoas – incluindo dois meninos de 11 anos – em condições de trabalho análoga à escravidão.

O caos fundiário das Unidades de Conservação é complexo e expressa o quadro de desordem fundiária que ainda é uma marca registrada da Amazônia. Mas o poder público têm o dever de encontrar as soluções jurídicas e financeiras para regularizar a situação fundiária das RESEX, juntamente com as Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e demais Unidades de Conservação.

No caso das Unidades de Conservação, o ICMBio recorrentemente alega insuficiência de recursos. Estimativas do órgão indicam a existência de cerca de 10 milhões de hectares de áreas privadas, ou supostamente privadas, que ainda precisam ser desapropriadas e pagas para que as UCs tenham suas terras regularizadas. Os custos estimados  desta regularização seriam de R$ 12 bilhões.

Mas os dados do orçamento, ano após ano, indicam que os recursos disponíveis vinculados à ação orçamentária “Consolidação Territorial das UCs Federais” (Ação 6381) mesmo sendo escassos são fracamente executados, o que desautoriza o discurso de que o problema principal seja a falta de dinheiro.

Em 2013 foram pagos apenas 1,16% dos R$ 66 milhões autorizados na Lei Orçamentária. Em 2014 as dotações desta ação tiveram um acréscimo significativo passando para R$ 223 milhões mas deste valor foram pagos apenas R$ 885 mil, ou seja 0,40%.

Falta de Recursos Públicos x Soluções de Mercado

A alegação da falta de recursos para a gestão das Unidades de Conservação e para a regularização fundiária vem sendo acompanhada, há alguns anos, do perigoso discurso de que é necessário buscar recursos de outras fontes, mais fartas e disponíveis.

No caso da regularização fundiária este discurso é muito claro. A “solução” mais fácil (porque rentável) foi encontrada na mudança do Código Florestal. Para aproveitar a “onda” de flexibilização dos compromissos com a proteção ambiental em terras privadas [1] criaram no Código Florestal um dispositivo que vincula a resolução do passivo com a regularização. Por meio deste dispositivo, um proprietário ao invés de recuperar uma área ilegalmente desmatada paga por uma área preservada dentro de uma Unidade de Conservação que estaria sob domínio particular. Este “suposto” proprietário de posse do dinheiro da compensação passa então a titularidade da terra ao governo, no caso o ICMBio. Ou seja, uma área que já está legalmente protegida vira compensação para uma área ilegalmente desmatada, sob o argumento de que este “negócio” é a solução possível para a falta de recursos públicos.

O perigoso discurso do governo brasileiro vocalizado pelo ICMBio de que faltam recursos financeiros para implementar a política das áreas protegidas é comum também no caso da gestão e proteção das UCs. A gênese do Programa ARPA – Áreas Protegidas da Amazônia executado desde 2002 é parte da construção e aceitação deste discurso.

Este Programa é implementado em parceria com órgãos estaduais da Amazônia, instituições privadas e sociedade civil com recursos oriundos principalmente do Banco Mundial (Fundo Mundial para o Meio Ambiente -GEF), Banco de Desenvolvimento da Alemanha (KfW) e Fundo Amazônia do BNDES. A gestão do Programa é feita pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade – FUNBIO, uma associação civil sem fins lucrativos com o apoio técnico da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) e a ONG World Wildlife Fund (WWF-Brasil) que também é uma doadora para o ARPA.

Frente à lacuna de recursos orçamentários e a fragilidade instrumental da política pública para as UCs conduzida pelo ICMBio o Programa ARPA se afirmou nos últimos anos como a solução mais efetiva para a consolidação das Unidades de Conservação na Amazônia.

O Programa foi, originalmente, desenhado para ser executado em três fases interdependentes e contínuas em um horizonte de 16 anos, com o desafio de apoiar a proteção de 60 milhões de hectares de florestas na Amazônia por meio do suporte a consolidação de unidades de conservação já existentes e a criação e consolidação de novas unidades. Atualmente o Programa está na fase II (2010 até 2015) e conta com um aporte de US$ 56 milhões.

Com uma estrutura baseada em referenciais de “marco lógico” com componentes, subcomponentes, metas, indicadores e um instrumento de monitoramento baseado em resultados é ele quem parece assegurar hoje um fluxo estrategicamente orientado de recursos para apoiar a criação, consolidação e manutenção de um conjunto significativo de unidades de conservação no bioma amazônico. Na prática, o ARPA disponibiliza mais recursos “na ponta” para as UCs do que o orçamento público federal. Um dos quatro componentes do Programa é a “Consolidação e Gestão de Unidades de Conservação”, onde estão projetos como o apoio à criação e funcionamento dos Conselhos de Gestão, a construção de planos de manejo, levantamento fundiário e demarcação das UCs.

Hoje, de um total de 42 Reservas Extrativistas na Amazônia, 32 estão no programa ARPA, uma área que soma 7,43 milhões de hectares, quase 90% do total da áreas das RESEX na Amazônia. A existência desta importante iniciativa, tanto do ponto de vista do recurso financeiro quanto do seu desenho e forma de implementação, não deveria ser, contudo, o contraponto a uma política pública pouco eficiente para as Unidades de Conservação e ao discurso do governo de que ele não dispõe de recursos públicos e humanos para garantir a gestão das Unidades de Conservação que cria. Um relatório do Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2013 que avaliou o estado de implementação das unidades de conservação na Amazônia concluiu que apenas 4% das 247 UCs na Amazônia têm um alto grau de implementação e de gestão.

A quase desobrigação com a gestão reflete-se também na forma como o governo se relaciona com o ARPA. O mesmo relatório do TCU atestou que o ICMBio não acompanha de forma sistemática as fontes que financiam as atividades de gestão nas unidades de conservação. Para obter, por exemplo, o montante de recursos aplicados pelo Arpa, o ICMBio teve que solicitar informações ao Funbio.

Assim, o ARPA parece ter se transformado no braço privado da gestão das UCs, sob a conivência do governo e reforçando o discurso de que o Estado não dispõe das condições para implementar a política pública que construiu.

Esta rendição financeira e instrumental da implementação da política de áreas protegidas representa uma omissão do poder público e é perigosa porque as soluções mais fáceis acabam se dando pela via do mercado e vêm carregadas de lógicas compensatórias que tentam transformar as áreas protegidas em unidades negociáveis para mitigar estragos ambientais produzidos pelo próprio mercado.

Além disto, os direitos dos povos da floresta residentes nas RESEX não serão garantidos pelo mercado.  Eles dependem de políticas públicas – de saúde, educação, assistência técnica, desenvolvimento produtivo – que vão além da gestão das UCs, mas que a ela devem estar articuladas.

[1] O ex presidente do ICMBio explicita a visão do órgão sobre o tema. (…)”Tem um mecanismo muito importante, que nos interessa dar um máximo de visibilidade. (…)”A chamada compensação da Reserva Legal prevista no Novo Código Florestal, a qual permite que algum proprietário, ao invés de recuperar sua propriedade, compense sua Reserva Legal comprando uma área que pode ser fora dela, desde que seja no mesmo bioma. Esta área pode ser qualquer área privada ou dentro de Unidades de Conservação. Então nós estamos organizando todo um procedimento e uma campanha de informação e motivação para que os proprietários rurais que quiserem compensar a Reserva Legal o façam dentro de uma Unidade de Conservação”.(…) “O acordo é entre privados, entre o proprietário que deve a Reserva Legal e aquele, dentro de uma Unidade, que está esperando a desapropriação. O que fica no ICMBio é o registro da propriedade. Do ponto de vista ambiental, a compensação de Reserva Legal é problemática. Um proprietário do Paraná, por exemplo, deveria compensar a sua Reserva Legal no próprio estado, mas nós estamos sendo pragmáticos, já que existe este passivo e não temos 12 bilhões na mão”. http://www.oeco.org.br/reportagens/27548-o-passivo-fundiario-e-so-a-ponta-do-iceberg-afirma-vizentin

Veja também: De onde vem a ideia de conservar a biodiversidade em Áreas Protegidas

Sobre a autora: Alessandra Cardoso é economista e assessora política do Inesc

Assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).