Projeto de lei sobre infanticídio criminaliza povos indígenas e ignora real causa das mortes de crianças nas aldeias

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Tramita na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado o Projeto de Lei Complementar (PLC) 119/2015, que altera o Estatuto do Índio (Lei 6.001), criando “proteções a crianças, pessoas com deficiência e idosos de comunidades indígenas que possam ter sua integridade física e psíquica ameaçada em razão de práticas culturais”. De autoria do ex-deputado Henrique Afonso (PV-AC), este projeto é, na verdade, uma grave ameaça aos direitos dos povos indígenas, criminalizando-os e atuando como mais um ingrediente para reforçar o preconceito, o racismo e uma suposta supremacia cultural.

Para Marianna Holanda, mestre em antropologia social e doutora em bioética pela UnB, esse PLC não se origina de uma demanda das organizações e povos indígenas, por meio de suas instituições representativas, e tampouco vem sendo debatido ou discutido por essas organizações – o que fere o direito central de consulta e de consentimento livre, prévio e informado sobre qualquer ato legislativo ou administrativo do governo que afete direta e diretamente os povos indígenas. Além disso, o PLC 119/2015 atenta contra os artigos 231, 210, 215 e 216 da Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

A pesquisadora lembra que iniciativas como esse projeto de lei partem da ideia fácil e colonial de que os povos indígenas são carentes de comportamento ético e de que precisam de leis e punição por parte do Estado Brasileiro para se tornarem “mais humanos”. O que fortalece a discriminação que ainda é muito grande no Brasil principalmente por causa da desinformação. “Quando se alardeia que eles são infanticidas e que matam sem reflexão suas crianças, e essa informação é facilmente assimilada como realidade possível, vemos o abismo que separa a sociedade nacional dos povos que aqui sempre viveram. Isso é racismo”, diz Holanda, categórica.

Para Valéria Paye Pereira, membra da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o projeto não traz benefício nenhum para os indígenas e, ao contrário, ignora a diversidade de povos, práticas, tradições e línguas, que é imensa (como você pode ver no gráfico abaixo). “Ele nos criminaliza e é mais uma lei que na verdade vem para reforçar o racismo, o preconceito e a noção da superioridade que os brancos veem sobre os índios, de poder julgar nossas ações. Sempre falamos que o melhor caminho é o diálogo”, afirma Paye.

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Entre as questões previstas no PL está, por exemplo, a necessidade de notificação por parte de qualquer cidadão sobre algum suposto episódio de violência, em seu artigo 7º: “É dever de todo cidadão que tenha conhecimento das situações de risco informar, notificar, comunicar ações e/ou atos que violam a vida, a saúde e a integridade física e psíquica de gestantes, nascituros, recém-nascidos, crianças, adolescentes, pessoa com deficiência, mulheres e idosos indígenas, por qualquer motivação, sob pena de ser responsabilizado na forma das leis vigentes.” Para Paye, isso gera um clima de vigilância e desconfiança que torna ainda mais difícil um dos principais entraves para o sucesso de políticas públicas na ponta: a dificuldade de encontrar profissionais qualificados e dispostos. “As políticas públicas já não chegam e este é mais um atalho para as pessoas não se sentirem estimuladas a trabalhar com os povos indígenas, porque é mais uma responsabilidade que terão, em uma situação muito complexa, sendo inclusive penalizadas. Esta é uma lei fora da realidade”, avalia.

Além de criminalizar os povos indígenas, reforçando preconceitos arraigados na sociedade brasileira, o PL também peca por ignorar a real causa dos óbitos de crianças indígenas: atenção básica de saúde. Enquanto o verniz religioso, ideológico e moralmente questionável pauta iniciativas do tipo, as crianças indígenas seguem morrendo por desnutrição, diarreia, falta de saneamento básico e aspectos da atenção primária da saúde. “As nossas crianças indígenas continuam morrendo por doenças que, a princípio, na sociedade dos brancos, não é mais admissível”, lembra Paye. A membra da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil questiona como um tema como esse pode ganhar tanto impulso frente outros problemas muito mais graves e imediatos. “Nossas crianças estão morrendo por falta de atendimento, mas isso não importa, é mero detalhe nesse processo. Para a gente é muito difícil ver essa situação”, lamenta.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) criada em 2010 é responsável por coordenar a política nacional da área e encontra dificuldades de acesso, recursos humanos e financeiros. Sobre a mortalidade de crianças, Fernando Pessoa de Albuquerque, representante da Sesai, reconhece que as crianças indígenas têm alta taxa de mortalidade não por causa do infanticídio e sim por problemas de atenção básica já citados. “No período pós-natal, a partir dos 30 dias, as crianças têm complicações respiratórias ou de diarreia que levam a óbito. Infelizmente temos uma taxa de óbito infantil de até 1 ano muito alta nas populações indígenas e isso tem relação também com a segurança alimentar”, diz Albuquerque. O pesquisador, que é doutorando em medicina preventiva pela USP e atua na área técnica de Saúde Mental e Medicinas Tradicionais Indígenas da Sesai lembra que, no Mato Grosso, por exemplo, onde há disputas de terra, populações indígenas foram tiradas de suas terras tradicionais e colocadas em reservas. “As famílias não conseguem mais produzir seu próprio alimento e isso vulnerabiliza ainda mais essas crianças. Muitas vezes elas não têm acesso a água tratada e apesar da Sesai conseguir chegar com o atendimento, estas pessoas ainda vivem em situações de vulnerabilidade”.

O chamado “infanticídio” ainda acontece em pouquíssimas etnias, sendo episódios raríssimos. Uma situação que está longe de ser comum entre as 305 etnias que vivem em 4963 aldeias pelo Brasil. Há, ainda, o preconceito que faz com que ocorram episódios em que agentes de saúde especializados que atendem a população em geral se recusem a atender indígenas em serviços como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e outros serviços que vão além da atenção básica ofertada pela Sesai.

A saúde mental é uma frente importante, já que algumas etnias desenvolveram problemas em relação ao álcool e em taxas de suicídio elevadas, problemas que podem ser tratados nos CAPS. Mas a escassez desses serviços, sobretudo na região Norte, onde fica boa parte da população indígena, é alta. “Temos realmente esse problema de escassez de serviços de saúde mental na região Norte. Por isso, triplicamos o número de psicólogos nos últimos 4 anos nos DSEIS e hoje são mais de 100”, afirma Albuquerque. É necessário que os psicólogos articulem com os agentes de saúde indígena a construção de uma rede para apoiar a família em sofrimento em conjunto com o pajé, fortalecendo o cuidado com a medicina tradicional indígena, que deve ser valorizada, lembrando que esta é uma das prerrogativas da política.

Na saúde da mulher, a Sesai tem tentado qualificar a vigilância do óbito nas aldeias indígenas, combatendo a subnotificação. Para diminuir a mortalidade materna indígena, também há um esforço em ampliar o número de consultas pré-natal e criar uma maior articulação com os hospitais de gravidez de risco, em conjunto com as práticas tradicionais, preservadas e defendidas. Mas a situação da cobertura de atenção básica na Região Norte, fundamental para crianças, bebês e gestantes, ainda é menor em comparação com o resto do Brasil, assim como o número de gestantes com 7 ou mais consultas pré-natal e a investigação do óbito.

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Paye lembra que uma reclamação constante é que as ações de saúde não chegam na ponta, principalmente na Amazônia e em regiões remotas. “Na minha região, em Macapá, tem mais de 1 ano que não tem atendimento nenhum, por ser difícil e só se chegar de avião. A desculpa é que a área é remota, essa é a justificativa. As crianças não são vacinadas, por exemplo, e o mínimo que se pode fazer de atendimento não acontece”, relata Paye. Para ela, SESAI e FUNAI até tem capilaridade institucional, mesmo ameaçadas, mas sofrem com falta de recursos humanos e financeiros. “Que adianta ter uma coordenação regional da FUNAI mas não ter ação?”, pergunta. Na visão de Holanda, a Funai vem sendo desestruturada há décadas, atuando com recursos cada vez mais escassos. “Há uma sinalização evidente dos últimos governos e principalmente deste mandato tampão que estamos enfrentando, de impedir atuação da política indigenista no Brasil. A situação atual é de possível fechamento de diversas Coordenações Técnicas Locais, que são as unidades administrativas da Funai espalhadas pelo território nacional e mais próximas das comunidades. Enquanto isso os cargos de Diretoria e Presidência vem sendo rifados em trocas políticas escusas que afrontam os direitos indígenas”, afirma. Recentemente, a APIB publicou nota em que repudia a edição de um novo decreto que estabelece novos procedimentos para a demarcação de terras indígenas.

Iniciativas como este PL estão ligadas diretamente ao desmonte de órgãos fundamentais, um projeto de poder que não permite a diversidade pois ela é mortal aos seus interesses. Para Holanda, o PL é um desserviço às lutas históricas do movimento indígena. “Ao afirmar que pessoas e grupos indígenas matam suas crianças, abandonam seus idosos e violam suas mulheres como se isso fosse uma particularidade de suas culturas o PL não apenas distorce a realidade – porque as estatísticas e as etnografias provam o contrário – como deslegitima todas as lutas por direitos dos povos indígenas. Porque regularizar terras, garantir seu usufruto exclusivo e dar atenção diferenciada à saúde e educação se eles não seriam nem capazes de viver em comunidade? Este PL é um grande equívoco”, sentencia. Procurada para uma entrevista, a FUNAI respondeu por meio de nota dizendo que “a Funai compreende que qualquer medida administrativa ou projeto de lei que cause impacto ou vise regular e legislar sobre questões indígenas deve ser feito a partir de amplo diálogo. O PLC nº 119/2015, ao instituir como obrigação do poder público zelar pela garantia do direito à vida e à saúde das crianças, jovens e idosos indígenas não inova verdadeiramente. Os povos indígenas são reconhecidos pelo cuidado que dispensam às suas crianças e idosos, sempre inseridos plenamente em sua vida comunitária. Qualquer iniciativa do Estado Brasileiro que vise proteger e assegurar qualidade de vida aos povos indígenas deve passar pela efetivação de políticas de saúde e de cidadania, bem como pelo diálogo”.

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Outro ponto polêmico do PL é o que prevê a remoção da gestante e da criança da aldeia. Diz o projeto: Os órgãos públicos, sobretudo o responsável direto pela saúde indígena, dentro de suas atribuições e em suas estruturas regionais, deverão manter cadastro atualizado de mulheres gestantes por etnia e/ou aldeia e proporcionar a elas acompanhamento e proteção durante todo o período gestacional e, ao verificarem que a criança gerada corre risco de vida, poderão, com anuência da gestante, removê-la da aldeia, atendendo as especificidades de cada etnia”. Para Holanda, o Estado deve dar toda a atenção à saúde necessárias à mãe e ao bebê em caso de uma gravidez de risco e/ou de complicações decorrentes do parto, porque é um direito. “Mas o Estado agir a partir de uma premissa falsa e absurda de que mães e familiares são assassinos e de que recém-nascidos correm riscos é total violação de direitos, não apenas da mãe que perde os vínculos, o apoio e os afetos com a aldeia – tão importantes durante a gestação – como da criança, que nasce fora da sua terra. Essa é a maior violação que uma criança indígena pode sofrer”, afirma.

É importante ter em mente que o infanticídio é algo que acontece em toda a sociedade, não é próprio dos indígenas, lembra Albuquerque, da Sesai. “É uma afronta criminalizar as populações indígenas que tem um enorme histórico de cuidado com as suas crianças. Darcy Ribeiro diz que a criança indígena é livre e sempre muito respeitada. A maioria das etnias considera as crianças como espíritos livres, isso tem que ser valorizado e destacado” diz. Paye finaliza dizendo que é inaceitável que um projeto como esse queira decidir pela vida e dizer aos indígenas o que devem ou não fazer. “Se sentem na obrigação de dizer a nós como devemos conduzir nossas vidas enquanto não conseguem cumprir suas próprias responsabilidades, metas de ação e políticas públicas”.

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Plano Nacional de Diminuição da Mortalidade Infantil Indígena

Recentemente, o Ministério da Saúde lançou o “Plano Nacional de Diminuição da Mortalidade Infantil Indígena”, com o objetivo de reduzir em 20% as mortes de bebês e crianças indígenas com até cinco anos de idade até 2019. Segundo o MS, “o foco será no reforço do acompanhamento de gestantes e crianças indígenas e na qualificação de profissionais de saúde em doenças prevalentes na infância, respeitando a diversidade cultural. O objetivo é impactar na diminuição de mortes consideradas evitáveis, já que 65% dos óbitos desses bebês são provocados por doenças respiratórias, parasitárias e nutricionais. Apesar de nos últimos 15 anos o índice de mortalidade infantil indígena registrar queda de 58% – em 2000 era 74,61 mortes por mil nascidos vivos e atualmente é 31,28 – a mortalidade ainda é quase três vezes maior do que a média nacional, de 13,8 óbitos a cada mil nascidos vivos”.

Promessas do MS

  • Reduzir em 20% as mortes de bebês e crianças indígenas com até cinco anos de idade até 2019.
  • Garantir que 85% das crianças menores de cinco anos tenham esquema vacinal completo;
  • Ampliar para 90% as gestantes com acesso ao pré-natal;
  • Implementar as consultas de crescimento e desenvolvimento para crianças indígenas menores de 1 ano, chegando a 70%;
  • Ampliar para 90% o acompanhamento pela vigilância alimentar e nutricional as crianças indígenas menores de 5 anos
  • Investigar ao menos 80% dos óbitos materno-infantil fetal.
  • Fortalecer e ampliar a assistência impactando nos óbitos evitáveis, causados, por exemplo, por doenças respiratórias, parasitárias e nutricionais
  • Entregar Unidades Básicas de Saúde Fluviais que atenderão ribeirinhos de municípios nos estados do Amazonas e Pará.
  • Segundo o MS, a prioridade na implantação das ações em 15 Distritos Sanitários Especiais Indígenas, cujo índice de mortalidade está acima da média ponderada/ano: Maranhão; Yanomami; Xavante; Caiapó do Pará; Alto Rio Juruá; Alto Rio Purus; Altamira; Amapá e Norte do Pará; Médio Rio Purus; Rio Tapajós; Mato Grosso do Sul; Alto Rio Solimões; Tocantins; Porto Velho e Vale do Javari.

Situação da Atenção Básica, Saúde Mental e Saúde da Mulher Brasil e Região Norte

Info: Equipes de Saúde da Família no BR, quanto mais escuro, maior a cobertura

Info: número de equipes de saúde da família e distribuição

Info: distribuição de UBS no Brasil

Info: gestantes com 7 ou mais consultas pré-natal, áreas em vermelho indicam menor incidência

Info: proporção de óbitos de mulheres em idade fértil investigados, áreas mais escuras indicam menos de 60% dos casos investigados

Info: CAPs todos os tipos, por região

Info: número de CAPS na Região Norte

Todos os gráficos, fonte: SAGE/MS

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Jornalista investigativo especializado em mineração, Amazônia, Cerrado, conflitos socioambientais, povos indígenas, crise climática e direitos humanos. Fundador do Observatório da Mineração. Vencedor do Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa (2019) e finalista do V Prêmio Petrobras de Jornalismo (2018).