Crédito rural na Amazônia: uma disputa necessária

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Até 20 de novembro de 2015 [1], foram aplicados no crédito rural mais de R$ 124 bilhões, considerando todo o Brasil, todas suas modalidades de aplicação (investimento, custeio, comercialização), todos os seus 18 programas (como o Pronaf, Moderfrota, Agricultura de Baixo Carbono) e todas as atividades rurais, da agropecuária ao extrativismo de castanha, por exemplo.

Olhando assim os valores parecem como muito expressivos, mas quando investigamos um pouco mais atentamente, que visão temos sobre as prioridades na aplicação destes recursos[2]? E, olhando, especificamente, para a Amazônia, para sua grande diversidade de “produtores rurais” e suas especificidades, para o quê e para quem o crédito rural tem servido? Qual a prioridade dada para a produção voltada para a segurança alimentar baseada nos produtos tradicionais da região? Qual o papel do Banco da Amazônia e do Fundo Constitucional no Norte nesta concentração do crédito e qual o sentido hoje da disputa pelo crédito na região?  Esta Nota Técnica tem como  objetivo mostrar a importância de perguntas como essas e dar pistas para que sejam respondidas.

Outro objetivo não menos relevante desta Nota é estimular organizações sociais amazônicas a utilizarem a base de dados disponível no Banco Central sobre o crédito rural como um instrumento de informação, de diálogo e de pressão política para que o crédito rural seja um instrumento de fortalecimento da agricultura familiar no seu sentido mais amplo: extrativista, ribeirinha, indígena, quilombola e camponesa.

As prioridades na aplicação dos recursos do crédito rural no Brasil

Já é amplamente sabido que o crédito agrícola no Brasil esteve historicamente e ainda está concentrado no Centro-Sul do país e que desde a década de 80 tal concentração se espraia para o Centro-Oeste e, nas duas últimas décadas, avança, tal qual o agronegócio para a fronteira Norte do país, mais especificamente no chamado arco do desmatamento. É também sabido que a concentração regional do crédito expressa a predominância na agricultura brasileira das chamadas commodities agrícolas.

Assim, os números de 2015 somente confirmam que o crédito rural é um instrumento e ao mesmo tempo uma expressão da dinâmica sócio-produtiva-regional do setor rural no país, fortemente dominado pelos interesses do agronegócio e do próprio governo brasileiro que se rendeu ainda mais fortemente na última década à estratégia de transformação do Brasil em fornecedor mundial de commodities agrícolas (e de minérios).

Alguns dados ilustrativos ajudam a materializar esta percepção da realidade. Em 2015, o Centro-Sul do país absorveu 65,2% do crédito rural do país e junto com o Centro-Oeste esta participação alcançou 87,6% dos R$ 124,54 bilhões emprestados.

A maior parte deste crédito foi para o custeio de atividades agrícolas. Foram no total R$ 52,61 bilhões para esta finalidade e a cultura da soja, sozinha, absorveu 39% deste valor, o equivalente a R$ 20,5 bilhões. A soja juntamente com milho absorveram quase a metade, 49%, do crédito de custeio agrícola.

Esta modalidade de crédito foi também, obviamente, dominada por grandes produtores. Os contratos acima de R$ 500 mil reais representaram quase a metade, 49,4%, dos valores contratados. E dentro destes, os contratos acima de R$ 5 milhões abocanharam nada menos do que 20% do total emprestado. Em um universo de 585 mil contratos de financiamento de custeio agrícola tivemos 795 contratos ou 0,1% dos contratos absorvendo 20% de tudo que foi emprestado.

Os dados da matriz do crédito rural do Banco Central são fartos e acessíveis e mostram, sob qualquer ângulo que quisermos avaliar, uma absoluta prioridade política para a grande agricultura orientada para a produção de commodities. Ocorre que esta prioridade, entre tantos outros fatores, tem significado uma redução progressiva da produção de alimentos no Brasil. É o que vemos, por exemplo, com o crédito para a produção de feijão que representou apenas 0,7% do crédito concedido, especificamente R$ 369 mil reais. Ou, ainda, o crédito para a produção de mandioca que representou 0,38% ou R$ 202 mil reais.

Na Amazônia brasileira, para o quê e para quem o crédito rural tem servido?

Não é novidade que as regiões Nordeste e Norte são as que menos acessam o crédito rural no país. Esta concentração é uma lógica derivação da associação entre o crédito e a grande produção de commodities que se concentra, historicamente, no Centro-Sul, a partir da década de 80 no Centro-Oeste e, nas duas últimas décadas,também no chamado arco do desmatamento na Amazônia.

Esta tendência de expansão da fronteira agrícola para a Amazônia pode também ser percebida nos dados do crédito rural de 2015.

Do total do crédito de custeio destinado ao Brasil, dos R$ 52,61 bilhões, a região Norte[3] acessou somente 2,07%, equivalente aR$ 1 bilhão. E quando olhamos para onde foi este R$ 1 bilhão do crédito rural na região vemos, igualmente, uma elevada concentraçãodo crédito nos estados do Tocantins, Rondônia e Pará e na produção de commodities. O gráfico abaixo evidencia a concentração espacial de 97% do crédito de custeio nestes três estados.

grafico1

Os dados do crédito por produto igualmente evidenciam uma excessiva concentração na produção de commodities.

No Pará, o crédito destinado à produção de soja, milho e dendê representou 71% do total do crédito rural no estado que alcançou no período o valor de R$ 122 milhões. Em Roraima, o crédito destinado à produção de soja, arroz e milho representou nada menos do que 94% do total do crédito rural, que foi de R$ 19,5 milhões para o estado. Em Rondônia, o crédito destinado à produção de soja, milho e café representou 90% do total de R$ 125,7 milhões.

A forte concentração do crédito rural na produção de commodities está fortemente associada ao seu crescimento na Amazônia. Os dados do IBGE de produção agrícola por município mostram, por exemplo, que nos municípios da Amazônia Legal ,entre 2004 e 2014, a produção de soja cresceu 94%, passando de 16,34 milhões de toneladas para 31,66 milhões de toneladas. Já a produção de arroz, produto que está na base da alimentação dos brasileiros, nesta mesma década a produção encolheu 53%, passando de 4,2 milhões de toneladas para apenas 1,9 milhões.

Em resumo, na região Norte a concentração do crédito rural na produção de commodities é sintomática do domínio deste instrumento pelo agronegócio. Esta concentração contrasta claramente com a presença irrisória do crédito para produtos agrícolas e extrativistas que estão na base das economias locais na região e também da segurança alimentar. A produção de mandioca, por exemplo, em todos os estados do norte juntos contou com apenas 0,5% do total do crédito de custeio.

É importante lembrar que na região Norte a principal instituição que opera o crédito rural é o Banco da Amazônia (BASA) e a principal fonte do crédito rural é o Fundo Constitucional do Norte (FNO). Desta forma, se torna necessário um olhar mais atento ao desempenho do BASA e dos recursos do FNO no crédito rural.

O BASA e o FNO: a quem servem?

Na Amazônia, a luta pelo acesso ao crédito rural com recursos do FNO ganhou força nos anos 90 e foi uma das agendas que viabilizou na Amazônia e em todo Brasil a forte mobilização social conhecida como “Grito da Terra”.

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Cartaz do 21º Grito da Terra Brasil de 2015

Essa luta garantiu que fosse assegurado na prática o que já estava na lei: uma prioridade de acesso ao crédito com recursos do FNO pelos pequenos produtores. Esse Fundo foi criado juntamente com os Fundos Constitucionais de Financiamento do Centro-Oeste (FCO) e do Nordeste (FNE) pela Lei nº 7.827/89, que regulamentou o disposto no art. 159, I, “c”, da Constituição de 88 e estabeleceu a destinação de 3% do total das receitas da União, basicamente provenientes do Imposto de Renda (IR), e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), para o financiamento dos setores produtivos das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A repartição destes 3% foi estabelecida da seguinte forma: 1.8%, para o FNE; 0.6%, para o FNO; e 0.6%, para o FCO.

Em 1996, por exemplo, do total dos recursos aplicados pelo FNO no setor rural 86% foram destinados aos mini e pequenos produtores rurais. É verdade que desde sempre a definição dessas categorias (e mini e pequenos produtores) foi fartamente flexibilizada para permitir que nela se enquadrassem proprietários com terras e rendas que em nenhum outro lugar do país poderiam ser considerados mini e pequenos. Mas, a despeito das distorções, a história da luta na região nos conta que houve a partir daí uma maior destinação do crédito do FNO para atividades rurais e, segundo, um comprometimento maior dos recursos com os mini e pequenos produtores que em grande medida estão hoje contemplados pelo público alvo do Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

Mas hoje, passadas mais de duas décadas de luta ainda cabem algumas perguntas. Em que resultou esta conquista? Ela foi mantida? Que recursos do FNO são acessados pelos agricultores familiares? Para contribuir com esta reflexão vamos olhar e estimular que outros olhem para os dados dos financiamentos concedidos ao PRONAF com recursos do FNO.

O total das aplicações do crédito rural com recursos do FNO, pelo BASA, alcançou no período analisado R$ 1,9 bilhões, considerando todas as modalidades de aplicação (custeio, investimento e comercialização) e as atividades de agricultura e pecuária. Deste valor, 26%, quase R$ 503 milhões, foram para o PRONAF, o que não nos parece a princípio uma porcentagem pequena.

Mas, grande parte do crédito do PRONAF, 81%, financia atividades agropecuárias. Foram R$ 405,7 milhões, do total de R$ 503 milhões, para a pecuária e para a agricultura foram R$ 97 milhões, 19%.

Quando olhamos mais de perto o destino do crédito do PRONAF, em específico o crédito de custeio agrícola, o que vemos, mais uma vez, é uma concentração na produção de commodities. Importante lembrar que dentro do PRONAF existem várias categorias, de micro agricultores até agricultores cuja dinâmica produtiva em muito se assemelha ao agronegócio, o que alguns pesquisadores já denominaram “agronegocinho”.

Os dados do crédito de custeio para o PRONAF só confirmam esta dinâmica. Do total deste crédito, 32% foram para custear a produção de soja dos agricultores familiares. Esta cultura, sozinha, foi apoiada com crédito de R$ 1,9 milhões de um total de R$ 6,1 milhões destinados ao crédito de custeio agrícola.

A narrativa governamental do PRONAF, ao longo de já quase duas décadas de sua existência, sempre foi fortemente marcada pela imagem de um programa de crédito aliado daqueles que são os verdadeiros guardiões da produção de alimentos no Brasil, respeitando e fortalecendo suas diversidades e especificidades. É com base nesta narrativa que hoje já existem 17 diferentes nomenclaturas do PRONAF que idealmente dialogam com a grande diversidade de públicos e interesses que gravitam no universo da agricultura familiar.

Mas quando olhamos os dados do crédito de custeio na região Norte a partir desta diversidade de públicos vemos que tal narrativa não se sustenta. O “PRONAF Agroecologia”, por exemplo, não teve um único contrato fechado em 2015 com recursos do FNO, a principal fonte de financiamento do PRONAF na região.

No “PRONAF Mulher”, outro exemplo, foram apenas 24 contratos com um valor total de R$ 252 mil reais. Isto representou apenas 0,3% dos valores aplicados no custeio agrícola do PRONAF, os quais, como já vimos, são valores muito reduzidos. Estas mesmas constatações valem para a maioria das demais linhas do PRONAF que idealmente tentam atingir públicos específicos, mas até eles não chegam.

Esta constatação que tem com base centenas de dados do Pronaf é, infelizmente, a mesma tida por Dona Raimundinha Valente, agricultora, 42 anos, moradora de Portel no Marajó, cidade próxima a Belém do Pará, que luta junto com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais para que os agricultores e agricultoras acessem o crédito rural do Pronaf, ainda sem sucesso. Dona Raimundinha, olhando os dados da matriz de crédito rural do Banco Central em Oficina sobre “Orçamento e Direitos” realizada pelo Inesc, em parceria e a convite do IEB[4], se deparou com a certeza do que já sabia: nenhuma operação de crédito do Pronaf chegou até sua cidade em 2015.

Como já dito no início desta Nota, um objetivo importante das reflexões e dados aqui apresentados é estimular movimentos, organizações sociais e pessoas como Dona Raimundinha Valente,  a se apropriem da ferramenta de dados abertos sobre crédito rural disponibilizada pelo Banco Central. É preciso que o extenso universo de informações disponíveis possa ganhar formas e sentidos dados pelas organizações que historicamente lutaram para terem acesso a estes recursos que são públicos, subsidiados e essenciais tanto para fortalecer suas capacidades sócio produtivas, quanto para garantir o alimento na mesa dos brasileiros.

Por isto, apresentamos aqui um passo a passo de como acessar esta base de dados.

PASSO A PASSO PARA CONSULTAR DADOS DO CRÉDITO RURAL NO SITE DO BANCO CENTRAL:

1) Entre no site do Banco Central no endereço http://www.bcb.gov.br/

2) No site do Banco Central entre no link superior “Sistema Financeiro Nacional” chegará ao endereço http://www.bcb.gov.br/?sfn

3) Dentro do item Sistema de Operações do Crédito Rural e do Proagro – SICOR haverá uma lista de opções e entre elas a “Matriz de Dados do Crédito Rural – MDCR” entre nele chegará ao endereço http://www.bcb.gov.br/pt-br/sfn/credrural/sicor/matrizinformacoes/Paginas/default.aspxEscolha . Escolha a visão de dados que mais te interessa.

Visão por Região, UF (Unidade da Federação) e Município

Visão por Produto

Visão por Segmento e IF (Instituição Financeira)

Visão por Tipo de Pessoa e Gênero

Visão por Faixa de Valores

Visão por Programa e Subprograma

4) Escolhida a visão, abrirá uma janela com a matriz dos dados onde você deverá selecionar o período que quer a consulta, a fonte de recursos, o Programa e Subprograma. Também pode pedir para filtrar todos. Veja exemplo do Pronaf “Mais Alimentos” com recursos do FNO. Feito isto clique em “exibir relatório”.

tabela1 tabela2

5) Abrirá a tabela com os dados, conforme imagem, que você poderá baixar em vários formatos (excell, Word, PDF etc..)

tabela3

6) Pronto! Sua consulta está feita!

 

Notas:

[1] Todas as informações sobre crédito agrícola utilizadas nesta Nota foram extraídas da matriz de crédito rural do Banco Central e se referem ao período de janeiro a novembro de 2015.

[2]Nesta nota optamos por investigar mais detalhadamente o crédito de custeio agrícola.

[3] – Utilizamos aqui a região Norte como uma proxi da Amazônia que além dos estados desta região também considera municípios do estado do Maranhão, Mato Grosso. Esta simplificação reduz o peso do crédito rural visto que o estado do Mato Grosso é altamente focalizado na produção de commodities.

[4] – Esta oficina foi realizada em Brasília nos dias 17 e 18 de novembro de 2015 e fez parte da formação de lideranças amazônicas para a defesa dos seus direitos, trabalho desenvolvido pelo IEB no projeto denominado “LIDERAR”.

 

Sobre a autora: Alessandra Cardoso é economista e assessora política do Inesc.

Assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).