O dendê, produto culturalmente associado no Brasil como um alimento regional baiano, tem na região da Amazônia – especificamente no Nordeste do Pará – sua maior produção: são mais de 700 mil toneladas por ano o que representa mais de 85% da produção nacional.
Em geral, o dendê é visto apenas como um produto cultural, típico de uma alimentação regional, mas ao contrário do que a maioria imagina, trata-se de uma commoditie, tal como a soja e a canola, cujo preço está atrelado à cotação do petróleo, uma vez que faz parte das oleaginosas utilizadas na produção mundial de biodiesel. A produção do dendê teve um crescimento exponencial em diversos países (principalmente Malásia e Indonésia) a partir de 2008, quando a União Europeia estabeleceu uma diretiva agrícola com a meta de mistura obrigatória de 10% de biocombustível nos combustíveis até 2020.
Os biocombustíveis foram, durante alguns anos, considerados uma escolha benéfica para o planeta. Hoje os efeitos colaterais dessa escolha ficaram mais claros. Em recente diretiva da própria União Europeia, o uso de biocombustíveis nos combustíveis foi reduzido para 7%, após o reconhecimentoo de que os agrocombustíveis ou biocombustíveis competem com a produção de alimentos, contribuem para as mudanças climáticas e forçam mudanças no uso do solo. Ou seja: além de não serem solução para as mudanças climáticas, agravam o risco de segurança alimentar no mundo.
E na Amazônia, como se deu o avanço do dendê? Quais são os impactos já visíveis desta expansão?
Para ajudar a entender melhor o avanço do dendê na região amazônia e seus efeitos entrevistamos Elielson Silva, ex-superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Pará, entre os anos de 2008 a 2013, e conhecedor da realidade fundiária da Amazônia. Atualmente, é assessor da Confederação Nacional das Trabalhadoras e Trabalhadores na Agricultura (Contag) da Região Norte e mestrando do Programa de Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde tem se dedicado à pesquisa das transformações fundiárias provocadas pela produção do dendê na região Nordeste do Pará.
Segundo Elielson, o histórico da expansão do cultivo do dendê tem momentos importantes como o início da plantação comercial em 1968, com um projeto de cultivo apoiado pela SUDAM e desenvolvido no município de Benevides, nordeste do Pará; a criação na década de 80 do Programa Nacional de Pesquisa do Dendê (PNP – Dendê) implantado pela Embrapa e executado pelo Centro Nacional de Pesquisa de Seringueira; o lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel em 2004; a primeira parceria entre empresas e agricultores para produção do dendê em 2005 e, o lançamento em 2010 do Programa de Produção Sustentável do Óleo de Palma.
Os interesses mercadológicos relacionados à dendeicultura começaram na região Nordete do Pará, na Amazônia, em 1968, no município de Benevides. No entanto, é a partir da década de 1980, com a política de incentivos fiscais, que a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) “passou a induzir a instalação de grandes empreendimentos de óleo de palma”, conta o pesquisador Elielson Silva. Entre as empresas beneficiadas com essa política está a Agropalma, que atualmente concentra 80% da produção do óleo no Pará. Instalada nos municípios de Moju e Tailândia, a empresa tem 107 mil hectares, dos quais 43 mil são ocupados com plantação de dendê.
A cultura do dendê começa a despertar maior atenção do mercado a partir de 2004, com o lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), criado pelo governo federal com o objetivo de impulsionar a produção de biocombustíveis, principalmente com a inserção da agricultura familiar. Entre as principais diretrizes estavam a implantação de um programa sustentável, promovendo inclusão social; a garantia de preços competitivos, qualidade e suprimento; e produção do biodiesel a partir de diferentes fontes oleaginosas, e em regiões diversas. “No PNPB foram definidas as cadeias produtivas que seriam incentivadas no Brasil, e na Amazônia ficou o dendê”, explica Silva.
Em 2005, estabelece-se uma parceria inédita no Nordeste do Pará, entre a empresa Agropalma e 35 famílias residentes no Assentamento Calmaria II, no município de Moju, região que concentra a produção de dendê do país. “Em 2006, essa parceria foi mediada pelo governo do Estado e se firmou o primeiro instrumento de parceria, entre Agropalma e um assentamento de reforma agrária”, explica Silva.
Parceria empresas x agricultores familiares
Financiadas pelo Banco da Amazônia, por meio do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), as famílias assinaram contrato de 25 anos com a Agropalma para produção e fornecimento do dendê. Um acordo bilateral, mas com maior acúmulo de responsabilidades e deveres para os agricultores familiares. “Esse contrato prevê a exclusividade da venda, da comercialização do produto com a empresa e o assentado tem que cumprir uma série de parâmetros para que aquele produto siga um padrão de qualidade. O dendê é de alta perecibilidade. Então, após a colheita, ele tem que chegar ao máximo em 24 horas na indústria de esmagamento”, conta Silva.

Detalhe da flor do Dendê , na palmeira. Crédito: Ronaldo Macedo da Rosa/Embrapa
Com o acordo, as famílias, que até então viviam da agricultura familiar, ficaram condicionadas à produção do dendê. “O que acontece com a produção do dendê é que ela requer mão de obra intensiva. Então, um agricultor familiar – com lotes de no máximo 25 hectares, sendo que destes 50% são de Reserva Legal – começa a produzir a partir do pacote tecnológico e do modelo de produção das empresas que exigem 10 hectares para produção do dendê. Matematicamente, de 12,5 hectares disponíveis em cada parcela de terra para a produção, 10 hectares são disponíveis para a produção do dendê, e o que sobra para o agricultor são 2,5 hectares. Ou seja, durante 25 anos ou mais, o agricultor familiar ficará imobilizado com a produção exclusiva do dendê. Além da Agropalma, grandes companhias como a Vale, Petrobras, ADM e outras exploram o dendê na região e fazem uma série de publicidade de que essa ‘parceria’, a que chamamos de agricultura por contrato, seria muito benéfica para o agricultor familiar, quando na verdade não é bem assim”, avalia Silva.
“Percebemos um conflito entre racionalidades econômicas diferenciadas. De um lado você tem a racionalidade do grande Capital, do agronegócio, que é a questão da produção em escala, do monocultivo, do produto ser dependente de cotação no mercado internacional – sujeito a oscilações e outros fatores. E por outro lado, você tem o modo de produção camponês, onde o agricultor familiar tem produção diversificada, a partir da mão de obra de sua família e consegue desenvolver uma série de atividades produtivas, como o cupuaçu, açaí, mandioca, etc”.
Ainda segundo Silva, as famílias arcam com todos os custos da produção, inclusive com a Assistência Técnica, contratadas pelas empresas, mas pagas com 1,5% do financiamento que os agricultores fazem pelo Pronaf. “Ou seja, a assistência técnica é contratada pela empresa, mas quem remunera é o agricultor, ou seja, todos os riscos da atividade são transferidos para o agricultor, que fica subordinado a esta nova condição”. Na prática, o compromisso das empresas é apenas com a compra da produção.
Corrida pela aquisição de terras
“Diante do crescimento mundial da demanda por fontes de energia renovável e por alimentos, aliada à necessidade de redução da dependência externa em relação ao óleo de palma, o governo federal lançou em março de 2010 na cidade de Tomé-Açu (Pará), seis anos após a criação do Programa de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), o Programa de Produção Sustentável de Óleo de Palma (PPSOP), com o intuito de alavancar essa cadeia de produção”, destaca Silva.
O Projeto de Lei que institui o Programa já foi aprovado em três comissões da Câmara dos Deputados – Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA) de Constituição e Justiça (CCJ) – e agora segue para aprovação em Plenário, no entanto, ainda sem data definida para entrar na pauta.
Com o lançamento do Programa e da apresentação das metas para cultivo, foi dada a largada à corrida pela aquisição de terras para expansão da dendeicultura na região.
“Por meio do Zoneamento Agroecológico (ZAE), foram identificados 31,8 milhões de hectares propícios para o cultivo da palma de óleo (dendê), sendo que destes, 29 milhões de hectares estão localizados na Amazônia Legal, e 2,8 milhões de hectares nas regiões Nordeste e Sudeste. Tais áreas constituem-se como desflorestadas e/ou degradadas e antropizadas, ‘sem restrições ambientais’ (BRASIL, 2010). Para fins comparativos, a área passível de destinação para o plantio de dendê de acordo com o ZAE é maior que o tamanho do Estado de São Paulo”, afirma o pesquisador.
Para Elielson Silva, o Programa de Produção e Uso do Biodiesel tem como meta fazer com que o Brasil seja o maior produtor de óleo de palma do mundo. “O plano triplica a área de plantio existente na Ásia”, que é ainda hoje a maior produtora do mundo de óleo de palma, concentrando sua plantação na Indonésia e Malásia, com mais de 10 milhões de área plantada (90% da produção).
No Brasil, após o lançamento do Programa, as empresas, sobretudo as multinacionais, iniciaram os arranjos para apropriação das terras na região da Amazônia. “Fizemos um estudo que identifica que o preço médio de hectares da terra aumentou 12 vezes, 1.200%, nessa região onde incide a produção do dendê. Então houve uma intensificação dessa compra de terras, uma supervalorização e aquecimento do mercado fundiário. Muitas comunidades rurais viraram plantios homogêneos de dendê, muitas fazendas foram vendidas (inclusive fazendas que eram terras públicas da União)”.
A empresa que mais comprou terras na região foi a Biopalma (Vale) – em torno de 110 mil hectares. No artigo Monocultivo de dendê, Capital Transnacional e Concentração de Terras na Amazônia Paraense, ainda não publicado[1], o pesquisador aponta que entre 7 de maio a 30 de junho de 2015 ocorreu um fato revelador com relação a empresa Biopalma. “No dia 07 de maio existiam na base do Cadastro Ambiental Rural (CAR) 117 áreas, que equivaliam a 113 mil hectares. Em 30 de junho, o número de imóveis rurais aumentou para 238 e a área ocupada chegou a 240 mil hectares, dobrando de tamanho em menos de dois meses”.
“A Petrobras e ADM (empresa norte americana) usaram técnica mais sofisticadas de apropriação de terras, como o arrendamento de fazenda. A Petrobras o fez principalmente na região dos municípios de Tailândia, Tomé-Açú, Baião e uma parte de Moju. A ADM está na região de São Domingos do Capim, Aurora do Pará, Mãe do Rio, Santa Maria do Pará, São Miguel do Guamá, Irituia e Capitão Poço. Outra forma de apropriação é por meio da desmobilização das terras do assentamento, por meio de ‘parcerias’ com as famílias, que é um processo de cooptação, em que se tenta estabelecer as ‘parcerias’ sem constituição de arranjo institucional.”
Antes de 2006, existia um assentamento na região ligado à produção do dendê. Hoje existem pelo menos 20 assentamentos integrados à essa produção, todos a partir de “parcerias” com as empresas Biopalma/Vale, ADM, Agropalma e Petrobras. “’As parcerias’ se dão por relação direta das empresas com as famílias. Se houvesse um arranjo institucional com a participação de outros atores, talvez tivéssemos uma relação menos assimétrica e desigual”, avalia o pesquisador.
A transferência da funcionalidade social do uso da terra dos agricultores é uma das preocupações. “Existe uma transferência grave de terras destinadas à reforma agrária da agricultura familiar para o monocultivo, condicionadas a uma outra determinação que não aquela da funcionalidade social, de produzir alimentos, gerar trabalho e renda”, pondera Silva.
Aspectos do monocultivo
Além da corrida para a aquisição de terras, com a expansão do monocultivo do dendê, houve uma crise na produção de alimentos na região, com a consequente disparada do preço dos alimentos. “A produção agrícola entre os anos de 2007 a 2013 apresenta uma queda na produção de mandioca e um aumento da produção de dendê. Esse levantamento foi realizado nos seis municípios com maior especialidade produtiva do dendê”, aponta Silva.
Fonte: Produção Agrícola Municipal, IBGE
Além dos conflitos, contradições e subordinação dos agricultores, existe outra questão importante que está se impondo nesse cenário: o surgimento dos assalariados rurais, que há 10 anos não existiam. Hoje, só em Bujaru, são aproximadamente 1.200 pessoas assalariadas ligadas à produção do dendê. Em Concórdia, são cerca de 2 mil. “Surgiu um novo sujeito social nessa região, estão criando sindicatos. Ocorre então que as famílias que antes tinham cinco membros produzindo na agricultura familiar, hoje têm 2 ou, 3, porque os demais agora são assalariados e isso também reflete na produção de alimentos”, pondera Silva.
Ao falar de Amazônia estamos falando de um território em disputa, composto por um conjunto de sujeitos que ocupam e disputam esse espaço. “Existe o discurso de que o dendê seria a redenção econômica da região, de dinamizar e promover transformações, incluir a agricultura familiar, mas constatamos inúmeras contradições, na prática não é bem assim. Os direitos territoriais estão ali sendo disputados por vários atores. Existe um incentivo oficial para a produção de dendê porque o Brasil não tem uma produção que atenda à demanda interna – chegamos a importar óleo de palma da Colômbia. O país quer se projetar internacionalmente com a produção de biocombustíveis, mas por outro lado quais são os custos para se fazer isso?”, questiona.
Custos da Expansão do Dendê
Os custos da expansão do dendê já estão ficando mais visíveis também no Brasil. Por ser uma commoditie atrelada ao preço do petróleo, mesmo sendo a produção da região quase que totalmente direcionada ao mercado interno como insumo da indústria de alimentos, a baixa dos preços já afetou internamente o setor e, claro, com ainda mais força afetou os agricultores familiares e os trabalhadores.
Crédito: Antonio Augusto/Câmara dos Deputados
Recentemente, em março de 2015, este tema chegou à Câmara dos Deputados por meio de uma audiência pública para discutir a situação de crise já instalada. Com a recente depressão dos preços do óleo de palma, reflexo da queda do preço do petróleo, os assentados e produtores familiares começaram a sentir o peso de contratos de 25 anos com cláusulas que amarram de diversas formas os agricultores ao destino e aos interesses das empresas que dominam o setor. A situação dos trabalhadores rurais contratados também é crítica.
Segundo o Deputado Federal Beto Faro PT-PA, que solicitou a audiência, cerca de 20 mil pessoas empregadas na produção do óleo de palma no Pará estão ameaçadas de demissão, por causa da queda do preço do petróleo.
Diante do quadro de crise, a solução apontada pelo parlamentar para evitar perdas de emprego é criar mecanismos para proteção ao setor, por exemplo, ampliando barreiras tarifárias para a importação de dendê da Colômbia que entra no Brasil com tarifa 0%.
Mas, sem desconsiderar a importância de políticas tarifárias que equilibrem as nossas relações de troca, o fato é que a aposta de que o dendê seria “a salvação da Amazônia” parece ter sido um equívoco a mais para a coleção dos projetos desenvolvimentistas para a Amazônia. Proteger com barreiras tarifárias, créditos subsidiados e incentivos fiscais um setor que traz duvidosos retornos econômicos e que, acima de tudo, traz perigosos impactos sociais, como os apontados por Elielson Silva, é no mínimo uma saída pela tangente.
[1]O artigo submetido à revista Campo-Território, edição especial sobre Grilagem e Estrangeirização de Terras, é de autoria de Elielson Silva, em parceria com os professores doutores Sônia Magalhães e André Farias, da Universidade Federal do Pará.