“Onde menos se espera”: Vivendo com a indústria do alumínio e do caulim na Amazônia brasileira

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Por: Diana Aguiar, Marcela Vecchione e Alessandra Cardoso

No aeroporto de Belém (PA), a propaganda da empresa transnacional francesa Imerys diz: “Onde menos se espera. O caulim é um minério que faz parte do seu dia.” O anúncio busca contar uma história positiva da ampla presença desse mineral em nossa vida cotidiana. O caulim é usado na produção de papel, pasta de dente, cosméticos e outros produtos de uso diário.

A triste ironia reside no que o anúncio esconde: as sucessivas contaminações dos rios e igarapés e as violações dos direitos das comunidades de Barcarena (PA) sitiadas pelas atividades de refino do caulim realizadas pela Imerys.

A empresa, juntamente com a Vale, domina o mercado de produção de caulim no Brasil com 40,9% da produção nacional. O minério extraído em Ipixuna (PA) é enviado por mineroduto para Barcarena onde a Imerys opera sua unidade industrial (a maior do mundo) que inclui a secagem, a embalagem e o terminal portuário privativo que exporta quase a totalidade da sua produção.

Barcarena é uma cidade próxima a Belém e sede do maior Pólo Industrial de Alumínio da América Latina. A primeira indústria estabelecida na área foi a Albrás-Alunorte (à época, um empreendimento que envolvia capital japonês e a empresa, então pública, Companhia Vale do Rio Doce) em 1984. O projeto fez parte de um processo global de relocalização de indústrias poluidoras e eletro-intensivas para o Sul Global. Mais especificamente, foi parte da decisão do Japão – no contexto da crise do petróleo da década de 70 – de realizar em outros territórios nacionais, que não o japonês, a produção de alumínio necessária para alimentar seu boom industrial do pós-Guerra.[1]

O regime militar brasileiro abraçou a oportunidade de receber essa indústria do alumínio na Amazônia, contraindo enormes dívidas em iene, a moeda japonesa.  A partir daí, o regime assumiu a tarefa de construir a infraestrutura necessária para a indústria florescer, colaborando, em especial, com a oferta  de energia elétrica barata. A mega-hidrelétrica de Tucuruí, construída a partir dos anos 70 no rio Tocantins, foi inaugurada em 1984 e resultou em desastres sociais e ambientais de grandes proporções[2]. Desde então, Tucuruí tem provido energia para a indústria do alumínio a preços subsidiados.[3] .

Atualmente, a refinaria Alunorte – Alumina do Norte S.A. transforma a bauxita, um mineral abundante na Amazônia, em alumina. A empresa é de propriedade da Norsk Hydro, que tem na sua composição acionária o Estado norueguês (34,3%), o Fundo de Pensão do Governo da Noruega (6,81%) e as diversas empresas transnacionais financeiras[4]. A Albrás – Alumínio Brasileiro S.A., que transforma a alumina da Alunorte em alumínio, pertence à mesma Norsk Hydro (51%) e ao consórcio japonês NAAC – Nippon Amazon Aluminum Co. Ltd (49%). Indústrias na região incluem, entre outras, a fábrica de aço USIPAR e as indústrias de processamento de caulim Imerys Rio Capim Caulim S.A. e PPSA (Pará Pigmentos S.A.).

A grande concentração dessas indústrias transformou a área numa “zona de sacrifício” para as populações locais. Uma das razões disso é que o processo de produção de alumínio é intensivo em água e energia e altamente poluidor do ar. No entanto, enquanto o alumínio percorre seu caminho nas cadeias globais de valor, a devastação da natureza –  base para as vidas das comunidades que cercam o polo industrial –continua nos territórios . Além disso, três décadas desde a instalação do centro industrial em Barcarena significou aumento exponencial da população na cidade devido à migração atraída pelas possibilidades de trabalho e ao intenso deslocamento de povos e comunidades tradicionais, bem como populações rurais em geral, em direção a áreas urbanas favelizadas.

O processo de transformação de Barcarena em um centro industrial começou durante o regime militar, mas continuou inalterado no planejamento governamental pós-democratização. Esse processo tornou a área um importante vetor de diversos corredores de comércio (Trombetas-Baixo Amazonas, Carajás-Tocantins, Vale do rio Capim, etc., com hidrovias e minerodutos transportando caulim e bauxita).[5] Nos últimos anos, a contínua industrialização de matriz primária ou de baixo valor agregado se tornou parte da política econômica do país de garantir superávits comerciais por meio  da exportação de commodities.

Amazônia como foco da crítica ao modelo de desenvolvimento na América Latina

Movimentos sociais têm consistentemente criticado os imperativos financeiros que   justificam esse  modelo de “desenvolvimento”, sua  consequente devastação ambiental , além de seu papel na espoliação das comunidades. Foi exatamente essa interconexão entre a financeirização da economia global, as políticas de “desenvolvimento” que esta acarreta e os seus consequentes impactos territoriais que o Seminário Latino-americano sobre “Financeirização da Natureza” discutiu entre 26 e 27 de agosto de 2015, em Belém do Pará[6].

Como parte do processo do Seminário, dois dias antes da reunião, grupos de ativistas sociais, pesquisadores e educadores populares se somaram a caravanas que visitaram comunidades no Nordeste paraense. A caravana da qual participamos foi confrontada com uma realidade de devastação e desespero. Visitamos as comunidades Acuí, Curuperé e Dom Manuel, que  enfrentam processos de desintegração social e a espera sem fim por uma compensação que possa lhes permitir reassentamento em um ambiente saudável.

Sem perspectiva, famílias abandonaram casas nas comunidades
A comunidade Acuí, com forte presença e de herança  indígena, viu sua população decrescer de 160 a 70 famílias, devido à dureza da vida em seu território. Durante nossa visita, eles afirmaram que esperam  uma solução para sua situação há 12 anos, vivendo em  estado de permanente transitoriedade, inclusive, não vendo razões para empreender esforços para  melhorar suas casas ou trabalhar nas roças, dadas as promessas constantes de que o reassentamento está prestes a acontecer. De acordo com os relatos feitos por eles/as, o solo e seus corpos estão contaminados com metais pesados e sua saúde comprometida. A descrença em qualquer promessa e o sentimento de abandono pelo Estado eram comuns nos relatos que ouvimos. Saímos da comunidade com um profundo sentimento de impotência, desejando ao menos expressar nossa solidariedade à luta de resistência deles/as.

A segunda comunidade visitada, Curuperé, era a expressão da tragédia de ter caulim “onde menos se espera” como parte do seu dia . Nos últimos dez anos, o igarapé que atravessa a comunidade é constantemente contaminado por vazamentos de caulim – e metais pesados associados ao seu processamento industrial – das bacias de rejeitos da Imerys. Onde 60 famílias viviam, agora apenas três permanecem, dependentes de caminhões pipa e enfrentando alegações corporativas de que a terra pertence à Imerys. Como geralmente acontece em estórias de despossessão, estas pessoas viram seus territórios serem invadidos pelo lixo industrial de um processo produtivo que não tem nada a ver com suas necessidades ou modos de vida.

Comunidade Dom Manoel
A situação é similar em Dom Manoel, uma comunidade fantasma que viu sua população decrescer  de 164 para oito famílias. As famílias que saíram antes de receber compensação o fizeram em razão da impossibilidade de viver ali. Aquelas que permaneceram alegam não ter para onde ir enquanto esperam a compensação. A Imerys afirma que comprou a terra onde essas famílias viviam há décadas – provavelmente se favorecendo da irregularidade do acesso e titulação da terra – e, portanto, se recusa a pagar compensação. A comunidade está imprensada entre plantas industriais em um lado e uma bacia de rejeitos da Imerys do outro. Pilhas de coque utilizados no processamento da alumina em alumínio podiam ser vistas a alguns metros das casas. Mesmo durante nossa curta visita, respirar o ar causava desconforto.

A contínua injustiça ambiental em Barcarena e as estratégias empresariais

As três comunidades, e outras diversas na região, têm enfrentado os enormes impactos das indústrias de beneficiamento mineral com pouco apoio do Estado. O primeiro vazamento grave de caulim aconteceu em junho de 2007. Os 200 mil m² de rejeito branco podiam ser vistos em uma extensão de 19km de rio, comprometendo seu uso, afetando, inclusive, os poços artesianos via contaminação dos solos e lençóis freáticos. Naquele momento, a fábrica foi multada em 2,6 milhões de reais e fechada por um mês. De acordo com estudos realizados no solo, o material vazado continha alta concentração de ferro, alumínio, zinco e cádmio, metais que acumulam no corpo e podem causar doenças degenerativas, disfunções hepáticas, deficiências imunológicas e demência.[7]

Mais tarde, naquele mesmo ano, o Ministério Público Estadual do Pará e a Imerys assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O instrumento extrajudicial incluía compromissos de: não jogar mais nenhuma substância tóxica no meio ambiente, construir um plano para reparação da área (incluindo repopulação da fauna nativa) e reestruturar as bacias de rejeitos. A compensação final incluía 463 mil reais em danos morais coletivos a ser entregue a associações locais e R$ 4 milhões ao Estado como compensação pelos danos ambientais, bem como  para financiamento de projetos que implicassem na  melhoria da qualidade de vida das pessoas[8]. No entanto, desde então, os vazamentos continuaram acontecendo e as comunidades afirmam que nenhuma reparação socioambiental foi realizada.

Enquanto isso, próximo ao portão da fábrica da Imerys, um grande sinal afirma orgulhosamente que a “empresa é beneficiada com incentivos fiscais à produção” pela Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), órgão do Ministério da Integração Nacional. Incentivos fiscais na Amazônia, especialmente em sua porção oriental, tem sido há muito tempo um fator de perturbação social e territorial. Além da isenção do principal imposto federal, o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, a Imerys ainda conta, no estado do Pará, com 100% de isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) o que reduz os principais custos, quais sejam, com  energia elétrica e combustível.

Tudo isso aconteceu em conjunto com um incremento da dívida do estado com a União, com um aprofundamento da dívida ecológica (tendo seus efeitos desproporcionalmente concentrados sobre comunidades atingidas) e distribuição desigual de riqueza entre os municípios.

O governo Federal ajuda a agravar o problema estimulando a chamada guerra fiscal entre os estados que querem atrair investimentos  para supostamente criar empregos e melhorar sua receita. Não se trata portanto de um problema causado pelo capital, mas também pela  forma como o modelo de desenvolvimento regional e sustentável, bastante contestável, está sendo implementado pelas unidades federativas em sobreposição ao  desenvolvimento comunitário. Em Barcarena, por exemplo, o governo municipal desempenhou um papel central em promover e reproduzir um modelo de “desenvolvimento” que prejudica as vidas e culturas das comunidades locais.

Pouco depois de a Caravana deixar o Pará, a Norsk Hydro anunciou que levaria a banda pop norueguesa A-ha a Barcarena[9]. Esse tipo de propaganda, assim como o anúncio da Imerys, é parte do conjunto de táticas corporativas desenhadas para construir uma narrativa que disfarce a dura realidade vivida pelas comunidades que visitamos.

Este conjunto de táticas inclui a criminalização daqueles que ousam protestar: algumas pessoas que encontramos estão enfrentando acusações judiciais por estarem lutando por seus direitos. Nesse contexto não surpreende o grau de desilusão que encontramos. Muitas/os delas/es pediram nossa ajuda para divulgar suas lutas de resistência e a impunidade sistemática que essas corporações desfrutam. Esse artigo é nossa tentativa modesta de fazer isto.

NOTAS

[1] M. Coelho; M Monteiro; I. Santos (2004). Políticas públicas, corredores de exportação, modernização portuária, industrialização e impactos territoriais e ambientais no município de Barcarena, Pará. Novos Cadernos NAEA.

[2] Comissão Mundial de Barragens (2000). Estudos de Caso: Usina Hidrelétrica de Tucuruí (Brasil).

https://www.lima.coppe.ufrj.br/files/projetos/ema/tucurui_rel_final.pdf

[3] Lucio Flavio Pinto (2010). A história da Albrás, grande desconhecida. Jornal Pessoal.

[4] http://www.hydro.com/en/Investor-relations/The-Hydro-share/Shareholders/Shareholder-overview/

[5] Coelho et al.

[6] https://br.boell.org/pt-br/conferencia-latino-americana-sobre-financeirizacao-da-natureza

[7] http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php?pag=ficha&cod=72

[8] Ibid.

[9] http://www.hydro.com/pt/A-Hydro-no-Brasil/Imprensa/Noticias/Hydro-traz-grupo-noruegues-a-ha-ao-Para-em-outubro/

Autoras: Diana Aguiar (FASE), Alessandra Cardoso (INESC), e Marcela Vecchione (NAEA/UFPA)

Organização não governamental, sem fins lucrativos, sediada em Brasília e que atua há 35 anos em defesa dos direitos humanos e pelo fortalecimento da democracia.