Foto: Matheus Alves/MNI
Quem antes recebia tratamento humanizado e que respeitava as suas práticas tradicionais agora se vê abandonado pela atenção básica do SUS. Este é o atual quadro que a saída repentina dos médicos cubanos do programa Mais Médicos causou nos 34 Distritos Sanitário Especial Indígena (DSEIs) Brasil afora. Para o governo de Jair Bolsonaro, os profissionais cubanos, maioria no programa que registrava até 85% de satisfação dos usuários, não eram bons o suficiente.
Essa mudança de rumo no programa deixa vulneráveis povos indígenas de diversas etnias e regiões, sobretudo no Norte e Nordeste do país. Das 332 vagas disponibilizadas para médicos brasileiros atuarem nos DSEIs, 200 ainda não foram preenchidas, mesmo com diferentes editais, chamadas e prorrogação de prazos.
Levantamento inédito realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que a situação pode ser ainda pior, já que dos 69 médicos inscritos no segundo edital da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, somente 19 de fato se apresentaram ao trabalho. Assim, seriam cerca de 250 vagas sem ocupação. O Ministério da Saúde espera que esses 50 ainda apareçam.
Em todo o programa Mais Médicos, são 1.460 vagas não ocupadas para atendimento à população em geral. O Ministério da Saúde alega que irá fazer novas chamadas em fevereiro (07 e 08) para médicos brasileiros formados no exterior e para médicos estrangeiros com habilitação para exercício da medicina no exterior (sem registro no Brasil) em 18 e 19.
A expectativa das fontes ouvidas pela reportagem, no entanto, não é promissora. Confrontados com uma realidade muito própria, com locais de trabalho distantes dos grandes centros e com dificuldades que se impõem pela própria característica do atendimento, os médicos brasileiros rejeitam o trabalho nos distritos indígenas. Parte dos que assumem, abandonam o cargo precocemente. A rotatividade é alta e consequentemente, o atendimento é descontinuado ou se torna pouco efetivo.
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Regiões mais críticas
A situação é especialmente grave no Amazonas: os DSEIs do Médio e Alto Solimões, somados, sentem a falta de 37 profissionais. Somente dois médicos apareceram até o momento para atender uma população estimada em mais de 95 mil indígenas. O DSEI Alto Rio Negro, também no Amazonas, onde vivem 40 mil indígenas, está com 16 vagas em aberto. Nestes três distritos, portanto, são 135 mil indígenas com o atendimento comprometido.
Outros casos que se destacam são os do DSEI Maranhão, com 17 vagas não preenchidas; do Tapajós, no Pará, com 11 e dos distritos Leste e Yanomami, em Roraima, com 19.
O Amazonas também é o estado mais crítico quando se analisa as vagas em aberto para atendimento à população em geral. Com exceção do Rio Grande do Sul, os estados mais deficitários estão no Norte (AM, Pará, Acre, Amapá, Roraima, Rondônia), Nordeste (Maranhão, Bahia) e Centro-Oeste (Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul).
No DSEI Mato Grosso do Sul, estado que é centro de conflitos violentos que envolvem ruralistas, grileiros e povos indígenas há décadas, das 11 vagas abertas no Mais Médicos, 7 ainda não foram preenchidas. Isso para o maior DSEI do Brasil, com população estimada em 83,4 mil pessoas, em uma área que vai desde a região metropolitana de Campo Grande até a fronteira com a Bolívia.
Para Lindomar Terena, ex-presidente do DSEI MS, embora o impacto da saída dos médicos cubanos ainda não tenha sido tão grande, os indígenas estão apreensivos pela possibilidade de ficar sem a reposição dos médicos e de que os novos profissionais que cheguem não pratiquem um atendimento humanizado e respeitem as práticas tradicionais, algo elogiado nos cubanos.
A preocupação tem precedente: um médico que passou pelo DSEI chegou a humilhar uma paciente indígena em função das práticas tradicionais e foi expulso da comunidade, relata Lindomar. “Não aceitamos isso. Precisamos nos mobilizar para tirar esse médico daqui. Esses problemas são comuns. Muitos não cumprem o horário determinado e, além disso, a rotatividade é muito grande”, afirma.
Realmente, não é raro que profissionais fiquem poucos meses e acabem desistindo do atendimento nos DSEIs. Para Lindomar, são enviados muitos médicos recém-formados que encaram a experiência “como um laboratório”.
Além de ampliar enormemente a atenção básica, que ainda é o grande gargalo do SUS no atendimento aos povos indígenas, o Mais Médicos também evitou 521 mil internações somente em 2015, gerando uma economia de R$ 840 milhões, um terço do orçamento do programa. Mais de 200 estudos se dedicaram a entender e mapear o Mais Médicos desde a sua criação, em 2013.
Em Roraima, problemas se acumulam
No estado com a maior proporção de habitantes indígenas do país e sede de dois DSEIs – Leste e Yanomami, que concentram quase 80 mil indígenas – os problemas se acumulam. Fontes ouvidas pela reportagem avaliam que o Mais Médicos não é a única questão para os distritos, mas que os profissionais mais importantes no modelo da saúde indígena são os enfermeiros e os profissionais indígenas, como agentes de saúde e técnicos de enfermagem.
De acordo com a avaliação da fonte especializada, os médicos podem dar uma retaguarda importante a este trabalho, mas não precisam estar permanentemente presentes em todas as comunidades, e não precisam estar em um número tão grande se puderem ter mais mobilidade. As regras do programa deveriam ser mais flexíveis para a realidade da saúde indígena, considera.
“Nem os novos profissionais nem os médicos cubanos tiveram uma preparação antropológica e indigenista adequada, e houve muitas dificuldades de adaptação cultural e social, e também com a comunicação da língua em muitas comunidades dos distritos”, afirma.
O profissional lembra que as condições de trabalho em área indígena são excepcionais, e em muitas localidades as condições de transporte, deslocamento e moradia são precárias para os padrões da vida urbana. “Sempre vão existir barreiras geográficas e culturais que devem ser aceitas por quem decide trabalhar em área indígena. Isto pode e deve ser melhorado, mas a questão da melhora na infraestrutura esbarra na burocracia e na legislação extremamente restritiva que atrasa muito o atendimento dessas necessidades concretas, de construção e aquisição de equipamentos para os postos de saúde e alojamentos para os profissionais”, relata.
Para a fonte, o modelo de assistência via uma secretaria especializada ligada ao Ministério da Saúde, está bem definido e aceito pelos indígenas. “O problema são as ingerências políticas que têm prejudicado a saúde indígena em todos os tempos e lugares. Com uma boa gestão, participação efetiva das comunidades e autonomia de decisão o subsistema certamente teria muito mais efetividade. Isto já aconteceu parcialmente nos primeiros anos de funcionamento dos Distritos Sanitários Indígenas, e os resultados alcançados foram muito melhores do que os atuais, com um orçamento muito menor”, analisa.