De 1995 a 2015, quase 50 mil trabalhadores foram libertados de situação de trabalho escravo no Brasil. Em 2015, foram resgatados ao menos 1,1 mil trabalhadores, o que mostra que o problema está longe de ser erradicado. Segundo o Ministério do Trabalho, a maior parte dos casos está no campo e a maioria das vítimas é homem entre 18 e 44 anos — 33% são analfabetos e 39% só estudaram até a quarta série. Mais: 29% dos trabalhadores libertados entre 1995 e 2015 atuavam na pecuária e 25% na cana de açúcar.
Desde 1940, o artigo 149 do Código Penal prevê pena de dois a oito anos para quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo. Em 2003, a lei foi ampliada e passou a ser considerado trabalho escravo expor o trabalhador a condições degradantes de trabalho, a jornadas exaustivas, ao trabalho forçado ou à servidão por dívida.
A ampliação do conceito fez com que o país fosse reconhecido internacionalmente como uma das nações mais combativas a esse crime no mundo. Em maio de 2016, documento de posicionamento da ONU sobre o tema elogiou a legislação criminal brasileira sobre trabalho escravo e pediu que ela fosse mantida. As Nações Unidas referiam-se a projetos de lei em tramitação no Legislativo brasileiro que têm como objetivo retirar os conceitos de condições degradantes de trabalho e de jornada exaustiva dos elementos que configuram o crime de trabalho análogo à escravidão. Posição também defendida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Um dos principais avanços conquistados pelo Brasil foi a criação, há mais de 20 anos, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho. Outra evolução foi o estabelecimento, em 2003, do cadastro de empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, a chamada Lista Suja do Trabalho Escravo, que havia sido suspensa e voltou a ser publicada agora em maio de 2017, após muita disputa política e jurídica. No entanto, ambos os mecanismos enfrentam riscos. O grupo especial, por exemplo, está com reduzido número de fiscais devido à falta de orçamento e concursos públicos, o que tem resultado em redução das operações de fiscalização.
Toda essa situação leva Antonio Carlos Mello, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT, a declarar, em entrevista exclusiva ao site Investimentos e Direitos na Amazônia, do Inesc, que “o Brasil pode retroceder de 20 a 25 anos no combate ao trabalho escravo”. Mello também comenta a realidade atual dos estados da Amazônia Legal e as necessidades urgentes para melhorar esse quadro. Atualmente, a OIT adota uma série de iniciativas em parceria com o Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho (MPT) e governos estaduais para combater práticas de exploração ilegal de trabalhadores no país.
No fim de maio deste ano, a OIT lançou em parceria com o MPT um laboratório digital com o objetivo de ampliar o conhecimento sobre o trabalho escravo e, assim, orientar políticas públicas. Dados preliminares dessa experiência indicaram que 25% dos trabalhadores resgatados vêm do Maranhão.
Outra frente é o impulso institucional de entidades que combatem esse crime. A agência da ONU tem projetos de capacitação tanto com a Polícia Rodoviária Federal, como com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e secretarias de Justiça e de Direitos Humanos.
Além disso, a organização apoia iniciativas de atenção às vítimas em pelo menos quatro estados brasileiros: Mato Grosso, Bahia, Ceará e Maranhão. Há ainda uma iniciativa regional chamada Rede Ação Integrada de Combate à Escravidão (RAICE) que engloba os estados de Piauí, Tocantins, Pará e Maranhão para fortalecer as comunidades de origem das vítimas do trabalho escravo.
Confira abaixo a entrevista com Antonio Carlos Mello, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT):
Amazônia INESC – Você afirmou recentemente que o Brasil corre o risco de deixar de ser referência no combate ao trabalho escravo, muito em função do caso Fazenda Brasil Verde, no Pará, que fica na Amazônia Legal. Isso apesar de alguns avanços históricos recentes. Qual o cenário atual do trabalho escravo no país, especificamente nos estados da Amazônia Legal?
Antonio Carlos Mello – Essa perda de status do Brasil vem muito em função da condenação do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo caso da Fazenda Brasil Verde. Isso traz o holofote da comunidade internacional para o país, no sentido de que é preciso observar se realmente o Brasil é essa referência que tem sido pregada. Outras fragilidades que vêm se impondo neste momento também colaboram para essa perda de posição do Brasil de referência frente à comunidade internacional.
E aí nós observamos retrocessos no conceito do trabalho escravo, principalmente em função da prevista regulamentação da PEC da Expropriação, em que existem projetos para que o trabalho escravo volte a um conceito da época do fim da escravidão, que seria só o trabalho forçado ou aquele com restrição de liberdade, retroagindo no conceito moderno que a OIT reconhece e que o Brasil adotou a partir de 2003. Além disso, também havia o caso da Lista Suja, que estava pendente de publicação. Parece que esse assunto, de uma maneira controversa, está sendo resolvido. Por fim, a própria atuação da fiscalização, que tem sido fragilizada, tanto em termos de recursos de pessoal como em termos de recursos financeiros. Isso enfraquece muito a posição de referência conquistada pelo Brasil.
O que tem acontecido ultimamente no Brasil é que tivemos, por exemplo, um processo de greve da Auditoria Fiscal, de todo um movimento por melhorias na carreira, motivado por perda de pessoal e cortes no orçamento. A própria crise econômica tem afetado os orçamentos dos ministérios e afeta também o trabalho dos auditores que fazem a fiscalização. Esse pessoal precisa ter estrutura, principalmente quando se fala de fiscalização nos rincões mais distantes do Brasil, como na Amazônia, por exemplo.
Paralelamente a isso, é muito claro, tanto em termos de observação empírica dos trabalhos que a OIT tem feito de apoio às vítimas do trabalho escravo no campo, como também nas próprias pesquisas que são feitas, de que a fiscalização alcança somente a ponta do iceberg. O trabalho escravo tem esse pedaço pequeno que está acima da superfície, visibilizado pelo resgate, mas existe toda uma incidência que, por todas essas observações, nos dão conta de que existe uma massa de trabalhadores que não chegam a ser resgatados e não entram no levantamento por uma série de dificuldades, ficando escondidos da realidade.
É óbvio que toda essa fragilidade do Brasil, apesar do esforço hercúleo dos auditores fiscais do trabalho e dos grupos móveis que envolvem parceiros como a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a DPU (Defensoria Pública da União) e o MPF, é muito mais difícil você chegar aos rincões do Brasil.
Quando olhamos para a região Amazônica, para a região Norte do país, notamos que é muito mais difícil ainda, pelas questões de infraestrutura, dificuldade de locomoção, dificuldade de identificação e precariedade das denúncias. É bem mais complicado você chegar a esse tipo de dimensão do que é realmente o trabalho escravo nessa região, que carece de mais conhecimentos sobre o que pode haver de precariedade aí em termos de super exploração do trabalho.
Amazônia INESC – Você diria que, no caso da Amazônia, seria necessário pensar em um modelo um pouco diferente do resto do Brasil – além do fato de você precisar ampliar e melhorar a fiscalização em si?
Mello – Com certeza absoluta. Uma das coisas que se precisa fazer com relação à região Amazônica é uma articulação maior da fiscalização ambiental com a fiscalização do trabalho. O que a gente nota quando olha para essa fronteira de expansão principalmente da pecuária, que está caminhando para dentro da Amazônia, é que existem crimes ambientais que são feitos conjuntamente com a submissão à condição análoga à escravidão.
Já existem algumas poucas iniciativas de fiscalização conjunta, mas é imprescindível que essas forças de repressão unam forças no sentido de ter um maior preparo em termos de inteligência para essas fiscalizações, para que elas aconteçam de maneira integrada. E que mesmo quando não feitas de maneira conjunta, que os fiscais de uma parte e de outra tenham um olhar para esse outro tipo de exploração que pode estar acontecendo de crimes ali que não são relacionados à questão ambiental, mas são relacionados à questão trabalhista, e vice-versa.
Falta ainda esse tipo de conexão, o Brasil precisa avançar na questão da inteligência, e precisa se modernizar tecnologicamente para conseguir descobrir de que maneira isso acontece nesses rincões mais afastados e poder chegar a tempo de fazer o resgate de fato.
Amazônia INESC – É possível dizer que os grandes projetos na Amazônia intensificam o problema do trabalho escravo?
Mello – Seria temeroso da minha parte, sem critérios, fazer essa conexão. O que eu posso dizer é que existe uma tendência: quando acontece o resgate do trabalhador que foi submetido à escravidão observamos que existem processos de intermediação normalmente envolvidos. É uma relação complexa. Conheço plantas de construção de hidrelétricas na Amazônia que eram verdadeiras cidades onde o trabalhador tinha qualidade de vida excelente. Mas também conheço casos de super exploração flagrante com submissão ao trabalho escravo. Então, acho precário eu fazer qualquer tipo de assertiva com relação a isso.
O que é considerado trabalho escravo?
São consideradas condições degradantes situações que colocam em risco a saúde ou a vida do trabalhador. Em geral, são um conjunto de irregularidades, como alojamentos precários, péssimas condições de alimentação, falta de saneamento básico, entre outros fatores.
Já a jornada exaustiva ocorre quando o trabalhador é submetido a esforço excessivo e jornadas extremamente extensas, que não permitem um intervalo longo o suficiente para um descanso adequado, acarretando danos à saúde e à segurança, podendo, inclusive, levar à morte.
Amazônia INESC – A situação política do Brasil nos últimos anos influi na questão do combate ao trabalho escravo? A própria divulgação da lista suja foi adiada várias vezes pelo governo atual e pelo anterior. Você observa no horizonte de médio prazo um avanço ou retrocesso nesse sentido?
Mello – O que vejo é que não está ligado a um posicionamento político de um governo – embora isso possa até acontecer – mas na verdade o que influi é que nós temos um entorno de crise econômica, com uma diminuição de priorização de determinadas atividades, como da própria fiscalização. A não reposição de auditores fiscais que se aposentam, a disponibilização de menos recursos para fiscalização, isso realmente tende a fragilizar o combate ao trabalho escravo. A fiscalização é uma peça fundamental.
E existem, obviamente, tentativas e projetos de lei tentando dificultar o trabalho da fiscalização e também regredir no moderno conceito estabelecido pelo Brasil desde 2003, o que claramente fere o processo de fortalecimento do combate ao trabalho escravo. Existem forças que estão lutando por essa retirada, e a ONU e a OIT tem instado o Brasil a manter essa conquista sob pena de nós voltarmos 20, 25 anos nos avanços que aconteceram no combate ao trabalho escravo.
Fazenda Brasil Verde
Outro fato recente que colocou o Brasil de volta ao escrutínio internacional no tema do trabalho escravo foi a condenação do Estado brasileiro, em dezembro do ano passado, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA).
O Brasil foi condenado por não garantir a proteção de 85 trabalhadores submetidos à escravidão contemporânea e ao tráfico de pessoas, além de não ter assegurado Justiça para outros 43 resgatados desta condição na Fazenda Brasil Verde, no Pará.
“A decisão foi histórica porque levou a corte a definir o que entende como trabalho escravo contemporâneo. Foi interessante porque incorporou não somente a servidão por dívida e a privação de liberdade, mas também a degradação à qual os trabalhadores foram submetidos”, disse a CPT em nota na ocasião.
Além disso, em maio deste ano, o Brasil recebeu uma série de recomendações da comunidade internacional para melhorar a situação de direitos humanos no país, entre elas o combate ao trabalho escravo. As sugestões foram feitas no âmbito da Revisão Periódica Universal (RPU), um exame detalhado ao qual o país precisa ser submetido a cada quatro anos.
O Reino Unido também pediu que o país ratificasse o Protocolo da OIT sobre Trabalho Forçado, de 2014, já ratificado por 17 países. Em maio, a OIT lançou no Brasil a Campanha 50 For Freedom para pedir que o país reforce o combate ao trabalho forçado com a ratificação do protocolo. Ele complementa a Convenção nº 29 da OIT sobre Trabalho Forçado e fornece orientações sobre medidas que devem ser tomadas para eliminar as novas formas de escravidão moderna, incluindo o desenvolvimento de ações de prevenção e assistência a vítimas.
Além disso, o protocolo identifica a necessidade de ações específicas para combater o tráfico humano, que alicia pessoas para a exploração sexual e para o trabalho forçado.